Crônica - A série
Parte 1: “Uma mesa, uma carta e uma ficha”
Senti na ponta de meus dedos a
textura daquelas duas cartas. Lisas, frias. Olhei-as rapidamente, e,
interiormente, um sorriso acendeu minha alma. Deitei-as novamente no feltro,
obscuras aos meus oponentes, assim como obscuras eram minhas intenções para
dali em diante.
A ambição maior dos jogadores de
poker ao receberem seus pockets, a maior combinação de cartas pré-flop, agora
em minha mãos, propiciaria à mim a vantagem que eu precisava àquela altura do
torneio. Tantas mãos perdidas, tantas mãos foldadas, tantas mãos feitas
esborrachadas em bad beats malvadas que teimaram em me castigar durante todo
aquele dia, poderiam agora serem sanadas se eu soubesse usar corretamente
aquele presente dos deuses do baralho.
Era minha vez no CutOff, à mesa,
estávamos sete jogadores. Sete gladiadores prontos para derramar sangue numa
arena verde... Não! Poético demais comparar-nos a gladiadores. Éramos naquela
altura como buldogues, vorazes, raivosos, em posição de ataque, prontos para
arrancar e mastigar todas as fichas do pobre desleixado que se julgasse o rei
do nut sem ter sequer um parco valete de espadas.
Essa era a nua e crua verdade
sobre os sentimentos de cada um naquela mesa semifinal.
Olhei o crupiê reagir a cada
jogador. O UTG fez um call tímido, que foi seguido pelo Hijack que, ao pagar a
blind, disfarçou um sorrisinho maroto, quase imperceptível.
A ação chegou a mim como uma
bomba explodindo em meu colo, a bem da verdade, aquele dia havia sido tão
sofrido que, repensando aquelas duas cartas, senti um tremor e duvidei
bruscamente do poderio absoluto delas.
Um calafrio percorreu minha
espinha, senti um desconforto na cadeira e comecei a me ajeitar no assento como quem tem uma pressa enorme em se levantar e fugir numa disparada sem direção,
sem previsão de terminar.
Percebi quando o crupiê levantou
os olhos, fixando-os em mim. Percebi de repente que todos na mesa me olhavam e,
naquele momento, tive certeza que todos sabiam o que eu tinha.
Mil duvidas me passaram pela
cabeça, mil tormentos antes experimentados amargamente sobre aquele feltro
macio que agora grudava em meu antebraço suado.
Senti um vento passar a minha
frente, e por um simples acaso, atinei que era minha própria mão em movimento
nervoso e reflexivo como que um abanar a frente do meu rosto e, em seguida, vi
a mesma mão, agora com vida própria, separar de meu pequeno castelo de fichas, duas
big blinds, praticamente um slowplay.
Desesperei, tremi. Percebi, nunca
faço slowplay. Todos sabem, sou um jogador seguro, agressivo e, apesar dessa
qualidade ser em parte bem previsível, num bom dia rende-me situações
extremamente +EV.
Aquele dia, todos a minha volta
presenciaram exatamente o oposto. Exatamente um mal dia com mãos fortes, um mal
dia em que tudo se voltava contra mim em um turn maléfico, em um river
demoníaco.
Meus oponentes, agora, sabiam o
que eu tinha, era mais que evidente. Um overpair no CutOff, uma jogada temerária
esperando obter valor num pote grande, mas uma jogada assustada de um gato
escaldado pelo dia -EV.
“Qual seria seu overpair?”
“Seria um Ás e Rei e estaria ele tentando acertar um flop generoso?”
Sim, as seis pessoas em volta de
mim agora sabiam que eu tinha uma mão forte. Tremi, pensei: “Não me renderá
absolutamente nada essa mão e em breve cairei para algum par setado no turn ou
river”.
Respirei fundo, olhei em volta,
alguns sorrisos maliciosos, alguns olhares de pena, um ou outro de cara
fechada, olhar semicerrado.
O Botão esperou alguns minutos e
optou pelo fold, seguido pelo smallblind. A big blind, uma velha adversária de
outros torneios, olhou, brincou distraidamente com as fichas. Parou de repente,
e, olhou para mim. Rapidamente, ela separou 6 big blinds e colocou-as na mesa.
Percebi o crupiê levantando as
sobrancelhas ao fita-la, incrédulo.
Devo dizer, de todos da mesa que
eu preferia enfrentar, ela era a última escolha e, a primeira a evitar.
O UTG olhou fixamente para mim
e, sem olhar para ela, empurrou 10 big blinds para a direção do crupiê.
Ao seu lado, os jogadores
seguintes sistematicamente sorriram balançando negativamente a cabeça e
entregaram suas cartas à mesa.
Senti o olhar daquelas três
pessoas me secando, me escrutinando pela minha reação. O crupiê com um olhar de
compaixão, o UTG com um olhar ferino, pontiagudo que atravessava minha alma e,
aquela linda mulher no botão, balançando os cabelos e olhando fixamente em meus
olhos, com um sorriso malicioso, porém, sedutor como fora na primeira vez que
me encarou tantos anos antes.
Todos sabiam o que eu tinha,
sabiam que eu dificilmente foldaria e que, provavelmente aplicaria um reraise,
o que poderia mudar a estratégia de slowplay para um overpair agressivo
pré-flop e talvez salvar um pouco a mão que eu havia estragado com um súbito
momento de descontrole emocional.
Para minha total surpresa,
novamente senti as palmas das mãos úmidas. Minha cabeça começou a girar por uns
breves segundos e, surpreendentemente, minha mão, aquela com vida própria,
correu a dar um temerário call na aposta corajosa ou desafiadora do UTG.
Da big blind, escutei um suspiro
e um olhar incrédulo e enternecido quando ela anunciou o fold. Ela viu, sentiu,
previu que eu levaria mais uma bad beat para a coleção que me assombrou durante
todas as últimas horas.
O crupiê pegou o baralho, porém,
agora, nenhuma emoção parecia exalar. Separou a carta de cima e puxou 3 cartas,
virou-as e espalhou-as num flop seco.
Olhei para o flop, senti um
calafrio, senti meus olhos apertarem e observei cuidadosamente a reação do UTG
ao 2♠, 9♥ e 8♣, distribuído pelo crupiê.
Ele simplesmente levantou os
olhos em minha direção. Frios, com gelo. Vazios como esperança perdida ao
vento. Novamente poético? Novamente divagando em meus pensamentos? Foi assim,
por isso me perdi nesta mão?
O UTG imediatamente arrastou
para a mesa um valor que parecia ser de metade do pote.
Olhei incrédulo, assustado,
triste até. O que era esperado de mim? Pagar e aceitar o meu destino ou foldar
e tentar uma próxima vez?
De repente percebi, não somente
os outros jogadores restantes, também uma multidão agora estava em volta da
mesa olhando fixamente para mim. Gelei.
Novamente aquela entidade ligada
a mim apenas pelo ombro se adiantou e empurrou um call sem mais, nem sequer
menos. Minha cabeça era um turbilhão. Voltou a minha mente, três mãos jogadas
naquele dia em que o jogador, agora no UTG, havia construído sua stack
justamente contra mim e me aplicando bads ensandecidas, desestruturando minha
confiança e meu poker.
O crupiê, então, caprichosamente
puxou um 3♦ no turn.
Senti uma gota de suor contornar
minha orelha e, acho que o UTG não deixou passar desapercebido. Mais uma vez,
ele separou para o feltro o equivalente a meio pote.
Respirei fundo, olhei de lado,
percebi os olhos da Big Blind me fitando e, li, profundamente em seu olhar, um
pedido, uma desesperada súplica para que eu foldasse. Entendi imediatamente a
gravidade da situação, porém, minha mão, mais rápida que meu raciocínio, já havia
deslizado fichas à mesa num novo call relutante, porém abruptamente imparável.
De repente, meus lábios
começaram a tremer. O crupiê, agora desalmado ao meu olhar apavorado, saca o
river, um excruciante 5♠! E, nesse momento, o UTG se recosta na cadeira
e...
Imediatamente, ele aplica um
INSTALLIN!
Aquela era a gota d’água. Se
restava algo de mim, de minha dissoluta coragem esvaíra-se por completo. Pedi
uma contagem de fichas.
Para minha surpresa, mesmo
pagando o allin do UTG, me restaria uma ficha pequena, uma única e simples
ficha. Encarei aquilo como a gozação suprema do destino. Se caísse para mais
uma bad nas mãos daquele jogador, seria histórico meu pesar e minha dor. Não
havia fuga, todos sabiam. Largar a mão que todos tinham certeza que eu possuía
não era realmente, e com o comprometimento com o pote, uma opção. Era tudo ou
nada e, mais uma vez, minha mão, mais dona de si do que eu de mim, empurrou
minha pilha para o crupiê. Exceto uma ficha!
Olhei aquela ficha, desamparada
na mesa, solitária... assim como eu.
Levantei os olhos e o UTG exibia
sorridente um 8♠ e um 9♦, formando dois pares no flop.
“Mostre seu par de ases, não
seja tímido!” – Zombou ele.
Corajosamente, levantei a
cabeça, olhei para a big blind e sorri amavelmente. Ela, ternamente me devolveu
o sorriso.
Olhei o UTG e, virei minhas
cartas.
Pude sentir na alma a dor que se
seguiu, os gritos de êxtase, os lamúrias. Os palavrões. Estufei o peito e me
levantei, triunfante, olhando para o incrédulo UTG que agora contemplava o meu
pocket pair de 2 trincado no flop.
Naquele momento, o Crupiê
contendo a gargalhada, avisou a todos que, a partir dali, começaria a mesa
final e que todos teríamos um break até o dia seguinte.
Peguei a mão da Big Blind, e
levei-a para casa. Naquela noite, o sexo com minha esposa, foi o mais
fantástico de toda minha vida, ainda mais que, ambos estaríamos bem na mesa
final do dia seguinte.
Que legal essa crônica! Fiquei aqui na agonia até saber o final!
ResponderExcluirMeus parabéns!
Obrigado pelo comentário Bruno!!!
ExcluirVamos incentivar o MarcioCP para que esta seja a primeira de muitas outras!!!
LukeKM
Incentivem mesmo!!! Eu conheci o site de vocês faz poucos meses (jogo poker há 1ano e meio) mas já li todos os posts, começando dos primeiros... agora acesso diariamente para ver novos posts!
ExcluirMeus parabéns!
Ah, adoro as tirinhas!!!