Crônica - A série
Parte 4: “Lucky man”
Segurei em meus dedos aquela
delicia, em meu rosto um sorriso maroto, desconcertante, de quem olha, quer,
pega e se sacia.
Minha risada cínica já provocava
os murmúrios da mesa há tempos e, bem, isso só me divertia e me fazia querer
mais ainda irritar todos que estavam a minha volta tramando, esperando,
conspirando.
Estiquei a outra mão e separei
uma banda daquela delícia. Gentilmente, levei a outra banda à boca e, com os
dentes, raspei o creme branco com pedacinhos de coco deixando que escorregasse
pela minha língua e se derretesse na minha boca. Em seguida, comi as duas
bandas de chocolate daquele delicioso biscoito, sorrindo, zombando, girando os
olhos, de um lado ao outro e todos na mesa, com suas caras fechadas, me
reprovando.
Haviam sido dois dias
maravilhosos. Eu chegara em Vegas, olhara todos do topo da escadaria e descera
para minha mesa. Já na primeira distribuição de cartas ficou evidente que seria
como tem sido nos últimos meses desde que comecei a jogar. Um passeio. Um
revigorante passeio rumo ao estrelato, ao sucesso... à fama! Era a primeira vez
que me sentava num torneio realmente importante. Um bracelete, uma montanha
rica e, a minha volta, os melhores seriam meus rivais.
Mas desde já, minha lua — sim, minha lua, como todos diziam
eu ter nascido virado para ela — me adornava e me deixava ciente de que me
acompanharia do início ao fim, despejando toda a sorte a meus pés para que eu
me tornasse o melhor de todos.
Bendito dia que, num passeio
pela avenida, eu me deparei com aquele poster, trazendo uma imagem singela de
um par de ases e a data, local e valor de um torneio de poker.
Nunca havia
jogado poker, mas olhei o prêmio e me senti atraído na hora para aquele
estranho jogo. Logo eu, uma pessoa que tive sempre o melhor da vida, apesar de
não ter nascido na riqueza, atravessara meus 30 e poucos anos recebendo o
sorriso da mãe sorte em cada empreendimento meu.
Me perguntei se, naquele joguinho de azar, seria o mesmo.
Entrei,
esvaziei os bolsos e, observei que pouco faltava para a inscrição daquele
torneio. Sorri, olhei em volta, sabia que ela
não me deixaria na mão. E, assim foi.
De longe, avistei uma garota a quem dei
minha atenção por algum tempo. Sabia que, ela, totalmente louca por mim, não se
negaria a cobrir o valor que faltava para a inscrição, ou, buy in, como depois fiquei sabendo.
Mulheres nunca me faltaram.
Elas vieram, passaram, choraram. Nunca me apeguei a uma, ou me preocupei se uma
ou outra se apegassem demais a mim. Era a vida, era minha vida.
Aquela garota
zangada olhou-me de cima abaixo, rosnou por alguns minutos, mas bastou eu
olhá-la com meu sorriso doce zombeteiro e ela se derreteu. Sim, minha sorte com
as mulheres nunca me deixou na mão. Muitos reclamavam de com que eu as usava e,
em seguida, as descartava.
Mas sou jovem, sortudo... podem
me culpar?
Não me custou muito tempo,
alguns beijos e algumas promessas para conseguir que ela me emprestasse a quantia
necessária para cobrir o buy in.
Pouco tempo depois, eu já
entendera as regras daquele jogo, observando quietinho os outros jogadores.
Agora, que eu sabia para onde direcionar minha sorte, nada me deteria.
Comecei
então a jogar. De início apostei alto, e já na primeira mesa minha sorte de
sempre me levou a seguir para a mesa
seguinte e para outra e mais outra até o que eles chamaram de FT, Final Table, Mesa Final.
Todos
estavam surpresos com minha chegada e curiosos. Quem era aquele jogador
desconhecido que vinha eliminando, um a um, jogadores profissionais conhecidos
e pouco conhecidos?
Com jogadas estranhas que sempre resultavam no que eles
chamavam de bad beat. Ouvia, em torno
de mim, os cochichos. Vozes baixas que pouco eu captava o que era dito, exceto
alguns poucos termos que mais tarde vim a conhecer pelo uso recorrente. Coin flip, Overcards, Outs, Donk, Fish... esse último, dezenas de vezes aplicado à mim. No fundo, a
cada mão ganha, ouvir essas pessoas resmungando, bravas, me chamando disso e
daquilo, passou a me divertir, a me incentivar. Que eram eles? Nada mais do que
invejosos da minha sorte. Eram o combustível que eu precisava para continuar e
continuar abusando da minha lua.
Quando eu abri as cartas da
última mão naquele torneio e escutei todos aplaudindo, eu sabia, dentro de mim,
que eu nascera para ser o campeão,
para ser o homem que levaria sua sorte a dobrar tudo e todos naquele jogo até
as mais altas esferas, nos maiores prêmios.
Em minha cabeça, um vendaval de
acontecimentos me levou. Festas, bebidas, mulheres. Fama, fortuna. Naquele
momento, talvez eu ainda fosse um pouco humilde, mas... para quê? Eu venci. Eu!
Que nem sabia as regras do jogo quando sentei na mesa. Mas, sempre foi assim em
minha vida. E sempre será.
Um ano se passou daquele dia. Vários
torneios nesse meio tempo, perder era algo tão raro que, em tempo recorde, a
fama, o dinheiro, as mulheres, todos estavam aos meus pés. Tenho tudo que minha
mente e minha sorte quiserem. E hoje, chegarei naquele topo. Naquele ápice. Serei
campeão do mundo!
Vegas tinha se mostrado uma
cidade como nenhuma outra para me levar ao topo. Na verdade, ali me senti um
rei. Ali, minha sorte estava em casa. Já imaginava, depois de ganhar o mundial,
me sentar nos casinos e mostrar para todos o que um deus pode fazer.
Sim. Um deus. Não se enganem, não resta mais, em mim, uma grama sequer
daquela pouca humildade que eu ainda tinha um ano atrás. Foi um ano de mesas e
mais mesas, vitórias e mais vitórias, festas e mais festas. Glamour, mais
glamour... Eu sou o cara.
Mostraria isso, agora não contra
grandes, mas, contra os deuses desse jogo. Os melhores de todo o mundo e, eles,
então, como todos os outros, se curvariam, àquele que foi agraciado pelo
destino para dominar aquele jogo de azar.
Como sempre, mesa a mesa eu
vinha jogando como queria, e ganhando como todos não queriam. Eu sabia, todos
os jogadores me odiavam. Muitos viam em mim uma oportunidade de ganhar mais,
mas outros viam em mim o oposto do que eles defendiam.
Olhava alguns que
alegavam passar anos e anos estudando, treinando e, sorria ao escutar
defenderem ser isso a forma de ganhar. Eu, por outro lado, destilava zombaria e
ironias a cada mão que ganhava. Quanto mais humilhado eu pudesse fazer meu vilão”, mais eu me divertia e me
vangloriava.
Agora era o momento.
Olhei do outro lado da mesa.
Éramos somente 5 ainda na disputa. Eu vinha, sistematicamente aplicando bads durante dias e dias. Toda imprensa
estava focada em mim e eu já era dado como campeão. Como é bom estar ali, no
centro do mundo, com tanto poder correndo pelas minhas veias.
Eu possuía a segunda maior stack do torneio. Do outro lado, um
atarracado sul americano de nariz achatado. Ele parecia insignificante, mas
tinha jogado bem nas ultimas 3 mãos e despachado 2 oponentes que haviam feito
de tudo para vencer minha sorte. Ele, com isso, me ultrapassara em stack e,
agora, era meu alvo perfeito.
De todos ele era reconhecidamente o mais fraco da
mesa e, seria perfeito. Minha sorte havia agido em favor dele, para que a meu
favor, eu tomasse todas as fichas dele e, de uma vez, mostrasse a todos a quem
pertencia aquela mesa. E era agora.
Em minhas mãos, um 8♣ e
um 3♥, do outro lado da mesa, o nariz
achatado disparou uma bet (sic)
para pegar as blinds. Ele começara a
fazer isso constantemente desde que sua stack
se agigantou. Decidi que era o momento e minha sorte não me abandonaria. Fiz
uma aposta maior em cima da dele (sic) para ver o que ele faria. Ele
me olhou e pagou.
A crupiê, uma linda americana
para quem eu sorrira e me exibira durante toda aquela mesa final, separou três
cartas e as colocou sobre a mesa.
Um 6♣, um 3♠ e
um T♦.
O sul americano de nariz
achatado olhou fundo nos meus olhos. Em seguida, ele apostou pouco menos que
uns 20% do valor do pote. Eu ri por dentro e, acho que não me contive,
gargalhei alisando meu cavanhaque, um gesto que eu tornara uma marca de quando
estava prestes a detonar um adversário.
Vou fazer ele achar que estou
blefando, — pensei. — pagando a aposta dele apenas invés de forçar.
A crupiê separou mais uma carta.
Um A♥.
Sem qualquer lucidez nem sequer
tremi ou me passou pela cabeça alguma preocupação que ele tivesse um Ás. Mas,
sabia que se ele tivesse, era agora que ele iria apostar forte.
Ele parou, pensou brincando com
as fichas. Depois de um tempo, ele deu um check.
Não era exatamente o que eu esperava dele. Achei que ele iria tentar comprar
aquele pote com aquele Ás, mas ele então mostrava que não.
Uma armadilha?
Talvez. Mas confio mais em minha sorte do que nas armadilhas desses estudiosos
de plantão.
Resolvi entrar no jogo dele e,
então, também dei check.
Na mesa, a crupiê arrastou um 3♦ para o river.
Eu, novamente, sem me conter,
comecei minha costumeira zombaria.
Todos em minha volta me olhavam
com a cara fechada, desaprovação era meu combustível. Se eles soubessem...
Agora eu queria, mais do que
nunca, que ele tivesse feito sua armadilha naquele Ás. E como sempre, minha
sorte me atendeu.
Meu vilão de nariz achatado olhou fixamente para as cartas na mesa e
anunciou o Allin!
Novamente soltei uma gargalhada.
Aquele tosco vilão achava que iria me
fazer desistir da mão fingindo ter trincado o 3? Quando eu mesmo fiz a trinca?
Olhei para o pobre perdedor e anunciei o call.
Sorrindo vi todas as fichas dele serem contadas. E em seguida as minha. Ele me
superava em pouco mais de 15% em fichas... Seria fantástico, nem esperei!
Com
um sorriso beirando a alucinação para meu vilão
coloquei abruptamente meu pocket
trincado no 3 sobre a mesa e comecei minha diversão.
Ninguém falou nada, todos
estavam em silêncio. Apenas minha risada ecoava.
Eu, agora, com as mãos
esticadas sobre a mesa, rindo sem parar.
Meu vilão, esticando as mãos sobre a minha, olhou-me nos olhos e, no
silencio daquele lugar, com todos calados me disse, em alto e bom som, num
português que me fez ver nele um compatriota:
— Calma, fish! Isso aqui é poker, não é bingo. Eu tenho um Ás e 3.
F I M
“Dedicado à todos os donks
e fishs que fazem a alegria do verdadeiro jogador de poker, aquele que
estuda, observa, entende e exalta um esporte e não uma brincadeira de egos.”
MarcioCP
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