sábado, 19 de julho de 2014

Crônica - Parte 6: “O Perseguidor – O Outro Lado da Moeda”


 Crônica - A série Parte 6:
“O Perseguidor – O Outro Lado da Moeda”


Por MarcioCP

Ato 1 – BSOP, São Paulo
Me curvei sobre a mesa, olhando fixamente para minhas duas cartas.
Eu havia planejado durante muito tempo aquele dia. Mas, nada, absolutamente nada poderia ser mais perfeito do que o roteiro feito pelo destino.

Eu ouvia a voz de minha tia, doce e terna sussurrando em meu ouvido. Como anos antes, quando ela tentava me confortar, me amparar na dor que, em momentos, eu sentiria e jamais me abandonaria.
Ela tentava, da melhor forma, explicar para uma criança de 6 anos, porquê sua mãe não voltaria para casa naquela noite. Desde então, jamais parou de doer.

São quase 20 anos. Cresci, sem pai, sem mãe, sem irmãos, apenas ela, aquela voz suave que eternamente tentava me confortar. Quando tive idade, aquela mesma voz decidiu que era a hora de me contar.
Era um rapaz, um bom rapaz. Tinha educação, tirava boas notas, fazia bons amigos. 

Era hora de ouvir e entender o motivo do vazio que eu sempre transpareci apesar da atenção e carinho redobrados de todos a minha volta. Eu não era mimado, mas... Todos tinham um cuidado além do normal comigo. Avôs, primos, tios e tias, amigos da família, amigos dos amigos da família.

Nos primeiros anos, aquela atenção pouco importava. Depois, ano a ano, aquilo me entediava. Me confundia. Até ela me explicar. Aquela tarde, após voltar da faculdade, ela sentou comigo e, durante horas e horas, falou sobre minha mãe. Me falou porque ela não estava ali.

Naquele dia, minha dor mudou. Talvez, meu coração tenha mudado também. Para sempre. Ela, em sua meiguice, não me escondeu nada. Nenhum detalhe, nenhum personagem. Minha tia, que me criou, me educou, me deu, naquele momento, um destino.
A partir daquela noite, minha vida mudou. Tranquei a faculdade, passei a ficar a maior parte do tempo em casa, estudando, arquitetando. O momento chegaria.

O momento, chegou.
Os quatro anos de preparação desfilaram por meus olhos no momento que olhei meu pocket, então, puxei o capuz, afastei os cabelos loiros da testa, que diziam ser o que mais lembrava minha mãe e, iniciei o primeiro passo concreto do meu ódio.

Era o momento perfeito, o destino ou a justiça haviam se encarregado de preparar o cenário perfeito. Eu havia apertado ele várias vezes. Àquela altura, ele já devia saber claramente que eu estava jogando com ele, e só com ele. Era perfeito, isso faria que ele tentasse me pegar na primeira grande chance. Ele abriu apostando. Eu voltei um reraise. Call!

Agora, olhando a mesa: um K♥, A♦ e um 6♣, e o velho vindo à mim, era claro que havia chegado ao auge do que o destino preparara.
Eu apostei naquele flop. 3bet, sim, isso! Minha 4bet é um alerta, velho! Call!

Um 8♠ no turn! Devagar... Não desista, velho! Check! Eu sei o que você quer! Check! Você está em segurança, velho! Iluda-se!

River, um 2♦, o que muda? Nada! Você é meu, velho! Não, não mostre fraqueza! Check! Não vou voltar atrás, 2/4 do pote! Se não for agora, velho, será depois, porque você ficou fraco! Você é meu!

Allin! Você é meu, velho hipócrita! Sua trinca de reis é forte!
Minha trinca de Ases é definitiva. Você é meu! Velho maldito!

Deliciei-me com o olhar atônito dele. Ele era a bolha
O destino está do meu lado. Ou será Deus, apenas em sua divina justiça? Pouco importa o resto, meu objetivo foi alcançado.

Sai para a calçada. Olhei aquele imponente hotel. Eu sabia que, em alguns meses, voltaríamos ali. 
Ele, provavelmente, já estaria ciente que sou para ele, como ele é para mim! 
Presa e predador. Feri-lo na mesa, com o maior amor da vida dele, o poker, me deu um prazer que, por instantes, acalmou a dor que carrego desde os 6 anos de idade.


Ato 2 – Mesa Final, LAPT/BSOP - 3ª Etapa, São Paulo
La Ciudad Jardin. Viña del Mar. Quando cheguei ao hotel, minha esperança de encontrá-lo era pouca, mas, o que se seguiu depois, jamais deixará minha lembrança. 
Cada vez que relembro a cara do velho quando deitei na mesa o par de 8... 
Não, aquele momento era eterno. Havia sido filmado, estava no youtube, e eu podia e usava como um analgésico para minha dor. Nada como o sofrimento de quem a gente odeia para apaziguar a dor que nos consome.

Foi com essa memória maravilhosa que eu voltei à São Paulo. Voltei ao palco de nosso primeiro encontro, uma mesa no Holiday Inn Anhembi. Mas, desta vez, o destino nos reservou a mesa final.

Restara apenas eu e o velho.
Eu olhava fixamente para ele, mão após mão. Eu era muito bom em Heads Up

O velho se gabava há semanas de ter melhorado seu jogo em HU
Dois dias antes, eu me sentara em uma mesa no restaurante, bem próxima à dele. Podia ouvir ele se gabar aos amigos de como havia se preparado especialmente para disputar Heads Up nessa temporada, de como mudaria a história do que havia acontecido nos anos anteriores.

Mas, não hoje! Eu cuidaria para que sua história não mudasse. Ao contrário, faria dela o mais humilhante que as cartas me permitissem. 
Assim, mão a mão, disputamos ficha a ficha. Por vezes ele ficou à frente, eu retomei, deixei-o short. Ele retomou, igualamos... Ele teve sorte. 

Um river maldoso de uma baralhada e eu estava short. Praticamente não me restava esperança. 
O velho ganhou confiança. Ele jogou o torneio todo com medo de mim. Agora, frente a frente, eu o desarmei, mas o baralho parece ter me traído.

Me resta shovar, shovar e shovar! Sim, dobrei!
Dobrei novamente! Voltei, velho maldito!
Estou novamente na frente, cara. Nada, nada em absoluto vai me privar de aliviar minha dor! Nem o baralho! Nem Deus! Nem esse velho maldito!

Ele agora abre com miniraise todas as mãos. Agressivo, sabe que só pode me ganhar se impondo. Não, velho, eu já disse... Você é meu!
Ele abriu seu miniraise. Call.

A♥, K♦, 6♠!
Check! O que o velho quer? Check!
O crupiê deitou um 7♣ no turn.
O que você está tramando, velho? Bet 2/4 do pote!
Parei de mascar meu chiclete... por um segundo, mil possibilidades passaram pela minha cabeça. Tirei meu capuz, levantei a cabeça, me recostei na cadeira. Meus olhos, de encontro aos do velho... Juro por Deus! Ele deve ter visto as faíscas que saíram da minha alma.
Call!

O crupiê deitou um T♣ no river.
Eu estava congelado. Olhar fixo no velho. Ele agora, cheio de confiança, cheio de coragem. Empurrou sua pilha de fichas... Allin!

Esperei a contagem. Minha pilha era maior, por muito pouco. Quase nada. Eu não havia me mexido um centímetro sequer até o anuncio do crupiê.
Lentamente, fechei meus olhos, recoloquei o capuz, recomecei a mascar. Call!
Vi a incerteza voltar ao rosto do velho. Ele, então, triunfante, deitou um AK suited de paus na mesa.

Permaneci por alguns segundos, mascando e olhando fixamente para ele, que ria com gosto daquela situação de vingança.
Peguei minhas cartas, levantei-as a altura do meu queixo e anestesiei minha dor ao ver sua risada morrer diante do meu 8♣ e 9♥. O river maldoso, assim como você, velho, é meu!
Vamos para Vegas, velho. Tenho coisas muito especiais preparadas para você!


Ato 3 – WSOP – Main Event, Limit Hold’em, $10,000 - Las Vegas
Eu me recostei em uma pilastra, observando de longe a mesa. 
O velho parecia um trapo. Certamente, o motivo era nossa pequena conversa após eu chutar sua bunda, na frente de todo o mundo, no evento anterior. 

Ele tentava jogar, mas estava descuidado, por vezes olhava em minha direção. 
Ora assustado, ora com raiva. A sua frente, outro jogador, um ruivo, com óculos escuros e fones já havia percebido a presa fácil que ele era. 

Eu podia ver, nos olhos do velho, que seu sonho de estar no November Nine desmoronava aos poucos diante do ruivo
Eu sabia que era a última tentativa dele. Eu havia caído cedo no torneio, mas não importava, mesmo de longe, minha presença ali, visivelmente mexia com o psicológico dele. 
Mesmo se ele voltasse, eu estaria lá, sempre em sua sombra. Pronto para derrubá-lo, colocá-lo de joelhos na frente de todos, que é o lugar dele.

Nossa conversa, dias antes... Agora, ele sabia...
“Mas, nossa diversão está só começando. Eu lhe juro, seu merda, ainda não terminei com você! Nossa próxima parada, é o seu tão desejado Main Event, velho!”
— Quem diabos é você, moleque? O que eu te fiz?
Olhei para aquele rosto atônito. Suspirei...
— Minha tia, irmã da minha mãe, me criou. Me criou para ser uma boa pessoa. Para ser gentil, caridoso... Me criou para perdoar...
— Que diabos eu tenho a ver com sua criação, fedelho? Pelo que vejo, sua tia fez um péssimo trabalho!
— Vinte anos atrás, minha mãe fugiu. Abandonou meu pai. Ela conheceu você, se apaixonou, acreditou em você. Abandonou marido, filhos, carreira... Na calada da noite. Isso destruiu meu pai.
— De que merda você está...?
— Minha mãe! Ela foi ao seu encontro... claro, você, como fez com tantas, se divertiu com a situação e a mandou embora. Ela voltou humilhada, mas meu pai... Ele jamais a perdoaria. Eles se separaram.
— É só isso? Você me culpa por seus pais se separarem e por isso você me persegue? Cresce, garoto! Vá resolver sua neura com sua mãe e me esquece!
— Mal conheci minha mãe, — comecei, suspirando. — Ela se suicidou, quando eu tinha 6 anos. Abandonada pelo meu pai, pela família... e por você!
— Meu pai? A vergonha e a dor foi tanta que ele desapareceu. Nunca mais voltou.

O tumulto das pessoas me tirou do devaneio da lembrança. Olhei para a mesa. O velho estava numa mão com o ruivo.
Olhei na mesa o flop com um 7♣, um 2♦ e uma Q♦.
O velho tinha anunciado allin com as poucas fichas que possuía. O ruivo se levantara, tirara os fones e anunciara o call.

O velho, com pouca confiança, virara na mesa um par de 7.
O ruivo, com o queixo erguido, mostrava um AT suited de ouros.
O crupiê puxou um 4♣. As pessoas em volta silenciaram. A tensão era considerável. Pude ver, no velho, um puxão no canto do lábio que, antes, não estava ali.

O crupiê puxou a última carta. Mais um river para o velho. Mais uma chance... Então, um 9♦
O velho se deixou cair na cadeira... seu sonho de ir ao November Nine chegara ao fim... de forma tão melancólica quanto aquele velho esparramado na cadeira.

Ele se levantou, e se apoiando nas pessoas, caminhou em minha direção...
— Feliz, fedelho? Mas, ao menos, não perdi para você.
Eu sorri.
— Arrogante e narcisista até o fim, não é? É verdade. Eu aceito que nem sempre poderei estar na sua frente para te humilhar.
Ele esboçou um sorriso tênue.
— Mas, eu posso dobrar as chances, velho. Você não perdeu para mim...
O ruivo aproximara-se de nós sorrateiramente, e agora estava ao lado do velho.
— Mas, perdeu pro meu irmão.
O ruivo aproximou o rosto do ouvido do velho que, agora, tremia de cima abaixo e sussurrou:
— Do túmulo, minha mãe mandou lembranças, velho bastardo!
— Não importa onde você vá, velho! — Agora, era eu quem estava com o rosto colado no do velho. — Não importa se você decidir tentar de novo, ou quantas vezes... eu SEMPRE vou te derrubar. Nem que seja pelo resto da minha ou da sua vida!


Fim!

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