quinta-feira, 12 de junho de 2014

Crônica - Parte 3: “Heads Up Fora da Lei”


Crônica - A série
Parte 3: “Heads Up Fora da Lei”


Por MarcioCP


Eu estava otimista, olhava atento para os dois, agora, de um ângulo totalmente diferente. Eles pareciam calmos, concentrados. Pareciam ter assimilado os fatos que nos trouxeram até aquela mesa, escondida, iluminada por uma luz tênue num canto úmido de um depósito sujo, fedorento.

À nossa volta, 7 homens bem vestidos, porém, impactantes, grotescos após suas apresentações rápidas e hostis.
O primeiro, é um homem conhecido das manchetes de jornais, de programas policias de TV, um “notório” por assim dizer, um bandido. Junto a ele, outros três, todos dizendo “amém” ao que ele mandava e desmandava.

Mas havia um outro, um “calhorda”, homem baixo, atarracado, com um olhar ferino e, ao contrário do “bandido”, que era até gentil e cortês em suas ameaças, esse era mais ríspido, mais impactante, mais orgânico. Para ele, outros dois homens diziam “amém”. Dois homens assustadores, que empunhavam armas semiautomáticas durante todo o tempo.
Os três valetes do “bandido” eram mais de cercar, deixar no ar a insinuação de suas periculosidades. Agora, aquelas figuras assustadoras estavam a nossa volta, absortos em tudo que ocorria sobre a mesa verde.

Logo de início, o “bandido” e o “calhorda” deixaram bem claras suas intenções e suas disputas e o porquê de nos terem trazido (à força, bem da verdade) até aquele lugar lúgubre, onde eu tinha certeza, nem o mau cheiro de nossos corpos em decomposição fariam uma diferença naquele ambiente que chamasse a atenção de quem quer que seja para nos encontrar.

Não. Ali não haveria ajuda, salvação e, olhando em volta, olhando aqueles homens brutais, nem haveria fuga.
Que ficasse bem claro aos jogadores, a disputa deles seria de vida ou de morte. Eles estavam ali para disputarem um Heads Up. Mas, não um qualquer, um que decidiria uma disputa entre os interesses do “bandido” e do “calhorda”. Em paga a derrota, haveria apenas um prêmio: sangue.
Então, os dois homens a minha frente, campeões acostumados a enfrentar grandes pressões em disputas milionárias, agora, enfrentavam uma grande pressão por um prêmio de valor incalculável, suas vidas.

Meu papel? Sim, meu papel. Eu deveria separar as cartas que decidiriam quem vive, quem morre. Nunca antes, creio, um crupiê, teve um papel tão importante num jogo de poker. De minhas mãos viria a dor de um, a alegria de outro. Eu seria responsável por um crime, e seria responsável por salvar uma vida. Independente da sorte ou matemática tomarem a decisão, minhas mãos seriam o instrumento de tal decisão. Isso me deixava o mais desconfortável que já estive em toda minha vida.

O Heads Up já se arrastava por mais de 3 horas. De um lado, nosso grande campeão, acostumado a derrubar jogadores experientes, jogadores matreiros, ganhador de milhões de dólares e pulseiras, representando o “calhorda” e seus interesses.
Do outro lado, defendendo os interesses do “bandido”, um afamado campeão online, milionário, inteligente, que havia ganho notoriedade derrotando milhares a frente de uma telinha e agora, derrubava lendas ao vivo e a cores em mesas espalhadas pelo mundo.
O duelo do velho, experiente, senhor de si, simpático, “bom ganhador” até mesmo para aqueles que mais o odiavam, contra o jovem, o exibido, o “mau vencedor”, o arrogante.
Não que eles fossem realmente velhos ou novos. Não acho que a diferença de idade entre eles seja maior que 10 ou 12 anos, porém, era nítido que eram de escolas de poker diferentes e, com certeza, escolas de vida opostas.

Devo dizer que, após o choque inicial da situação, ambos se comportavam como campeões, assimilando que, naquele momento, mais do que nunca, deveriam jogar o melhor poker de todos os tempos.
Porém, mais forte que o “jovem campeão”, era sua índole ser, de acontecer, de centralizar todas as atenções sobre si. Quanto mais ele ganhava, mais a situação entre ele e o “velho campeão” se acirrava. Cada mão ganha era uma facada verbal vinda do “jovem” em direção ao peito do “velho”, um escárnio, uma comemoração, uma alusão, mas, sempre, sempre uma tentativa de humilhação desestabilizadora.

Confesso que, com tantos anos de poker, eu olhava aquilo com um profundo desprezo. Mas, não podia negar, ele demonstrava ser um jogador fora do comum. Isso me assustou, já àquela altura a stack do velho campeão estava abalada pelas boas mãos do jovem campeão e começava a ver em seu rosto uma mudança que só pude identificar como uma tristeza, talvez com uma pontada inicial de pavor. Sim, eu começava a ver em seu rosto, antes inexpressivo pelo calejar dos anos psicológicos de uma grande carreira no poker, um vislumbre da certeza de que ele iria morrer. Não depois, não por si ou fatalidade, mas ali, pelas mãos bárbaras daqueles valetes que rezavam para o “bandido” e para o “calhorda”.

Isso acendeu algo em mim, pois, até aquele momento, eu não parara para pensar no meu destino naquela trama estranha. O que seria de mim? Assim como o vencedor eles me poupariam? Ou isso era apenas um prêmio para quem vingasse nas cartas? E se o lado perdedor culpasse a mim pela sorte das cartas? E se o “calhorda” perdesse? Pelo que vi, ele com certeza era vingativo e sanguinário.

Agora, eu comecei a sentir uma estranha certeza de que iria morrer. Meu próprio pavor chegou e se instalou em meu rosto.
Quanto mais aquilo duraria? A stack do “velho campeão” estava se esvaindo, sendo tragada, talvez até por um dia de downswing. Não, não demoraria muito agora. E, justamente ele, representando o “calhorda”, o vingativo, o perigoso declarado naquele instante seria o lesado pelas decisões do baralho. O que seria de mim? O mesmo destino do velho?

Enquanto eu embaralhava e distribuía as cartas e todas essas coisas passavam como relâmpago por minha mente, um brilho no olhar do “jovem campeão” me acordou, tirou-me do devaneio de imaginar como e se teria o mesmo destino do perdedor.

Rapidamente, o “jovem campeão” deu saída num raise forte após relancear os olhos em seu pocket. O “velho campeão” parou, levantou a ponta de suas cartas e observou. Seguro de si, após fechar os olhos por alguns segundos que mais pareceram uma eternidade, ele aplicou uma 3bet.
O “jovem campeão” sorriu. Fez um call ligeiro, rude, estreitando os lábios num bico como de quem está saboreando uma iguaria doce e deliciosa.
Separei as cartas, espalhei-as pela mesa, e, fechando os olhos por um segundo, suspirei profundamente e as virei.

Um 8♥, um 3♣ e um A♦.
Um flop rainbow com uma pesada overcard. Eu tive a certeza que o “velho campeão” gostou muito daquele flop. De repente, uma sensação de alivio me invadiu, talvez o “bandido” fosse mais clemente se fosse derrotado. Ele parecia mais sensato, menos propenso a extremos como o “calhorda” decerto era. Parecia mais, “apaziguador”.
O “jovem campeão”, agora, com um semblante menos traiçoeiro que de início, arriscou uma aposta no flop. Achei que ele se curvaria e cederia, invés disso, ele aplicou uma bet do tamanho do pote.

Me assustei! Teria ele feito uma trinca? Dois pares? Novamente, fui tomado de assalto pela sensação de morte iminente. Olhei para o “velho campeão”, ele, sereno, tranquilo, apenas levantou a cabeça e fez call. Meu pavor, novamente, desapareceu.

Separei mais uma carta, coloquei-a sobre o verde, e lentamente virei-a. Um 7♥.
O “jovem campeão”, mais uma vez, apostou o valor do pote e, mais uma vez, o “velho campeão” resoluto fez um call, agora seco, sem pestanejar. Ambos, agora, se fitavam olho no olho. Vi faíscas, vi dois semblantes duros, não mais humanos, mas máquinas. Ambos sabiam que havia chegado a hora. Um viveria, um morreria. Qual dos dois eu seguiria? Comecei a tremer.

De minha mão tremula, a última carta, um decisivo e fatídico river estava agora deitado sobre a mesa e parei. Olhei-a por alguns instantes, o suficiente até para que os dois jogadores e todos presentes virassem seus rostos em minha direção. Todos agora, cientes de que eu, entre todos, era o mais assustado. Lentamente e com enormes tremedeiras, estiquei minha mão para virar aquela carta.

Uma Q♥!
Olhei a board. Nenhuma carta dobrada, nenhuma carta conectada. O que teriam aqueles dois espetaculares campeões para chegarem ali apostando suas vidas de uma única e decisiva vez?
O “jovem campeão”, sem tirar os olhos dos olhos do “velho campeão” pronunciou apenas:
— All-in!

Ao “velho campeão”, o call significava apenas empurrar todas as suas fichas, perder sua vida. Não que o “jovem campeão” ficasse em situação pior se perdesse, porém, com o que sobraria, ele não duraria mais do que 2 ou 3 mãos. O “velho” sabia, era agora ou nunca.
— Call! — anunciou o velho e, abrindo um sorriso, empurrou para o centro suas duas cartas, virando-as em seguida e exibindo um par de ases trincado no flop.

Uma sensação de salvação me invadiu! Minha tremedeira cessara, minha vida poderia estar salva!
— Excelente mão, velho! — começou o jovem. — Porém, você é velho, eu sou jovem. Eu tenho muito pela frente, você, não tem nada!

Ao pronunciar a palavra “nada”, o jovem virou suas cartas e meu sorriso desapareceu!
Um 3♥2♥ suited! Um flush! Desde o início, o jovem blefara, mas um fortuito runner runner selara os destinos daqueles três homens sequestrados.

— Eu vou viver! — gritou o jovem, levantando-se e abrindo os braços.
Olhei-o atônito, desesperançoso, quando o “bandido” olhou-o e estranhamente indagou:
— Viver?
— Sim, — respondeu o “jovem”. — não foi isso que você deixou bem claro desde o início? Quem ganhar vive, quem perder, morre?
— Você me entendeu errado. — atalhou o “bandido” — Essa disputa não se trata das vidas de vocês. Veja, eu e meu sócio divergimos de como devemos lidar com uma situação. Temos uma pequena comunidade e ela se apossou de algo que é muito importante para nós e quer “negociar” por esse algo. Meu sócio defende que invadamos e matemos todos e recuperemos o que é nosso. Eu, defendo que negociemos, talvez castiguemos um ou dois como lição, mas sem chamar a atenção matando tantas pessoas. Você vê? Hoje, na verdade, você salvou umas 40, 50, talvez mais pessoas.

— Então, — disse eu, sorrindo de felicidade e alivio por ter minha vida salva, e intrometendo-me pela primeira vez desde que tudo se iniciara. — não era sobre nos matar ou nos deixar viver? Era sobre a vida de outras pessoas!
— Exatamente. A vida de vocês três nunca esteve em questão neste jogo.
Nós três sorrimos aliviados.
— Veja bem, — continuou o “bandido”. — Nós nunca deixamos testemunhas de nossos negócios. Vocês já estavam mortos no momento que sentaram nessa mesa.



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