sábado, 28 de junho de 2014

Crônica - Parte 4: “Lucky Man”


Crônica - A série
Parte 4: “Lucky man”

Segurei em meus dedos aquela delicia, em meu rosto um sorriso maroto, desconcertante, de quem olha, quer, pega e se sacia.
Minha risada cínica já provocava os murmúrios da mesa há tempos e, bem, isso só me divertia e me fazia querer mais ainda irritar todos que estavam a minha volta tramando, esperando, conspirando.
Estiquei a outra mão e separei uma banda daquela delícia. Gentilmente, levei a outra banda à boca e, com os dentes, raspei o creme branco com pedacinhos de coco deixando que escorregasse pela minha língua e se derretesse na minha boca. Em seguida, comi as duas bandas de chocolate daquele delicioso biscoito, sorrindo, zombando, girando os olhos, de um lado ao outro e todos na mesa, com suas caras fechadas, me reprovando.

Haviam sido dois dias maravilhosos. Eu chegara em Vegas, olhara todos do topo da escadaria e descera para minha mesa. Já na primeira distribuição de cartas ficou evidente que seria como tem sido nos últimos meses desde que comecei a jogar. Um passeio. Um revigorante passeio rumo ao estrelato, ao sucesso... à fama! Era a primeira vez que me sentava num torneio realmente importante. Um bracelete, uma montanha rica e, a minha volta, os melhores seriam meus rivais.

            Mas desde já, minha lua — sim, minha lua, como todos diziam eu ter nascido virado para ela — me adornava e me deixava ciente de que me acompanharia do início ao fim, despejando toda a sorte a meus pés para que eu me tornasse o melhor de todos.
Bendito dia que, num passeio pela avenida, eu me deparei com aquele poster, trazendo uma imagem singela de um par de ases e a data, local e valor de um torneio de poker.
Nunca havia jogado poker, mas olhei o prêmio e me senti atraído na hora para aquele estranho jogo. Logo eu, uma pessoa que tive sempre o melhor da vida, apesar de não ter nascido na riqueza, atravessara meus 30 e poucos anos recebendo o sorriso da mãe sorte em cada empreendimento meu. 
Me perguntei se, naquele joguinho de azar, seria o mesmo.
Entrei, esvaziei os bolsos e, observei que pouco faltava para a inscrição daquele torneio. Sorri, olhei em volta, sabia que ela não me deixaria na mão. E, assim foi.
De longe, avistei uma garota a quem dei minha atenção por algum tempo. Sabia que, ela, totalmente louca por mim, não se negaria a cobrir o valor que faltava para a inscrição, ou, buy in, como depois fiquei sabendo. 
Mulheres nunca me faltaram. Elas vieram, passaram, choraram. Nunca me apeguei a uma, ou me preocupei se uma ou outra se apegassem demais a mim. Era a vida, era minha vida. 
Aquela garota zangada olhou-me de cima abaixo, rosnou por alguns minutos, mas bastou eu olhá-la com meu sorriso doce zombeteiro e ela se derreteu. Sim, minha sorte com as mulheres nunca me deixou na mão. Muitos reclamavam de com que eu as usava e, em seguida, as descartava.
Mas sou jovem, sortudo... podem me culpar?
Não me custou muito tempo, alguns beijos e algumas promessas para conseguir que ela me emprestasse a quantia necessária para cobrir o buy in.

Pouco tempo depois, eu já entendera as regras daquele jogo, observando quietinho os outros jogadores. Agora, que eu sabia para onde direcionar minha sorte, nada me deteria.
Comecei então a jogar. De início apostei alto, e já na primeira mesa minha sorte de sempre me levou a seguir para  a mesa seguinte e para outra e mais outra até o que eles chamaram de FT, Final Table, Mesa Final. 

Todos estavam surpresos com minha chegada e curiosos. Quem era aquele jogador desconhecido que vinha eliminando, um a um, jogadores profissionais conhecidos e pouco conhecidos? 
Com jogadas estranhas que sempre resultavam no que eles chamavam de bad beat. Ouvia, em torno de mim, os cochichos. Vozes baixas que pouco eu captava o que era dito, exceto alguns poucos termos que mais tarde vim a conhecer pelo uso recorrente. Coin flip, Overcards, Outs, Donk, Fish... esse último, dezenas de vezes aplicado à mim. No fundo, a cada mão ganha, ouvir essas pessoas resmungando, bravas, me chamando disso e daquilo, passou a me divertir, a me incentivar. Que eram eles? Nada mais do que invejosos da minha sorte. Eram o combustível que eu precisava para continuar e continuar abusando da minha lua.
Quando eu abri as cartas da última mão naquele torneio e escutei todos aplaudindo, eu sabia, dentro de mim, que eu nascera para ser o campeão, para ser o homem que levaria sua sorte a dobrar tudo e todos naquele jogo até as mais altas esferas, nos maiores prêmios. 

Em minha cabeça, um vendaval de acontecimentos me levou. Festas, bebidas, mulheres. Fama, fortuna. Naquele momento, talvez eu ainda fosse um pouco humilde, mas... para quê? Eu venci. Eu! Que nem sabia as regras do jogo quando sentei na mesa. Mas, sempre foi assim em minha vida. E sempre será.

Um ano se passou daquele dia. Vários torneios nesse meio tempo, perder era algo tão raro que, em tempo recorde, a fama, o dinheiro, as mulheres, todos estavam aos meus pés. Tenho tudo que minha mente e minha sorte quiserem. E hoje, chegarei naquele topo. Naquele ápice. Serei campeão do mundo!

Vegas tinha se mostrado uma cidade como nenhuma outra para me levar ao topo. Na verdade, ali me senti um rei. Ali, minha sorte estava em casa. Já imaginava, depois de ganhar o mundial, me sentar nos casinos e mostrar para todos o que um deus pode fazer.
Sim. Um deus. Não se enganem, não resta mais, em mim, uma grama sequer daquela pouca humildade que eu ainda tinha um ano atrás. Foi um ano de mesas e mais mesas, vitórias e mais vitórias, festas e mais festas. Glamour, mais glamour... Eu sou o cara.
Mostraria isso, agora não contra grandes, mas, contra os deuses desse jogo. Os melhores de todo o mundo e, eles, então, como todos os outros, se curvariam, àquele que foi agraciado pelo destino para dominar aquele jogo de azar.

Como sempre, mesa a mesa eu vinha jogando como queria, e ganhando como todos não queriam. Eu sabia, todos os jogadores me odiavam. Muitos viam em mim uma oportunidade de ganhar mais, mas outros viam em mim o oposto do que eles defendiam.
Olhava alguns que alegavam passar anos e anos estudando, treinando e, sorria ao escutar defenderem ser isso a forma de ganhar. Eu, por outro lado, destilava zombaria e ironias a cada mão que ganhava. Quanto mais humilhado eu pudesse fazer meu vilão”, mais eu me divertia e me vangloriava.

Agora era o momento.
Olhei do outro lado da mesa. Éramos somente 5 ainda na disputa. Eu vinha, sistematicamente aplicando bads durante dias e dias. Toda imprensa estava focada em mim e eu já era dado como campeão. Como é bom estar ali, no centro do mundo, com tanto poder correndo pelas minhas veias.
Eu possuía a segunda maior stack do torneio. Do outro lado, um atarracado sul americano de nariz achatado. Ele parecia insignificante, mas tinha jogado bem nas ultimas 3 mãos e despachado 2 oponentes que haviam feito de tudo para vencer minha sorte. Ele, com isso, me ultrapassara em stack e, agora, era meu alvo perfeito. 
De todos ele era reconhecidamente o mais fraco da mesa e, seria perfeito. Minha sorte havia agido em favor dele, para que a meu favor, eu tomasse todas as fichas dele e, de uma vez, mostrasse a todos a quem pertencia aquela mesa. E era agora.

Em minhas mãos, um 8♣ e um 3♥, do outro lado da mesa, o nariz achatado disparou uma bet (sic) para pegar as blinds. Ele começara a fazer isso constantemente desde que sua stack se agigantou. Decidi que era o momento e minha sorte não me abandonaria. Fiz uma aposta maior em cima da dele (sic) para ver o que ele faria. Ele me olhou e pagou.

A crupiê, uma linda americana para quem eu sorrira e me exibira durante toda aquela mesa final, separou três cartas e as colocou sobre a mesa.
Um 6♣, um 3♠ e um T♦.
O sul americano de nariz achatado olhou fundo nos meus olhos. Em seguida, ele apostou pouco menos que uns 20% do valor do pote. Eu ri por dentro e, acho que não me contive, gargalhei alisando meu cavanhaque, um gesto que eu tornara uma marca de quando estava prestes a detonar um adversário.
Vou fazer ele achar que estou blefando, — pensei. — pagando a aposta dele apenas invés de forçar.

A crupiê separou mais uma carta. Um A♥.
Sem qualquer lucidez nem sequer tremi ou me passou pela cabeça alguma preocupação que ele tivesse um Ás. Mas, sabia que se ele tivesse, era agora que ele iria apostar forte.
Ele parou, pensou brincando com as fichas. Depois de um tempo, ele deu um check. Não era exatamente o que eu esperava dele. Achei que ele iria tentar comprar aquele pote com aquele Ás, mas ele então mostrava que não. 
Uma armadilha? Talvez. Mas confio mais em minha sorte do que nas armadilhas desses estudiosos de plantão.
Resolvi entrar no jogo dele e, então, também dei check.

Na mesa, a crupiê arrastou um 3♦ para o river.
Eu, novamente, sem me conter, comecei minha costumeira zombaria.
Todos em minha volta me olhavam com a cara fechada, desaprovação era meu combustível. Se eles soubessem...
Agora eu queria, mais do que nunca, que ele tivesse feito sua armadilha naquele Ás. E como sempre, minha sorte me atendeu.

Meu vilão de nariz achatado olhou fixamente para as cartas na mesa e anunciou o Allin!
Novamente soltei uma gargalhada. Aquele tosco vilão achava que iria me fazer desistir da mão fingindo ter trincado o 3? Quando eu mesmo fiz a trinca?
Olhei para o pobre perdedor e anunciei o call.
Sorrindo vi todas as fichas dele serem contadas. E em seguida as minha. Ele me superava em pouco mais de 15% em fichas... Seria fantástico, nem esperei!
Com um sorriso beirando a alucinação para meu vilão coloquei abruptamente meu pocket trincado no 3 sobre a mesa e comecei minha diversão.

Ninguém falou nada, todos estavam em silêncio. Apenas minha risada ecoava. 
Eu, agora, com as mãos esticadas sobre a mesa, rindo sem parar.
Meu vilão, esticando as mãos sobre a minha, olhou-me nos olhos e, no silencio daquele lugar, com todos calados me disse, em alto e bom som, num português que me fez ver nele um compatriota:
— Calma, fish! Isso aqui é poker, não é bingo. Eu tenho um Ás e 3.

F I M


“Dedicado à todos os donks e fishs que fazem a alegria do verdadeiro jogador de poker, aquele que estuda, observa, entende e exalta um esporte e não uma brincadeira de egos.”
MarcioCP



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