terça-feira, 6 de maio de 2014

Crônica - Parte 1: "Uma Mesa, uma Carta e uma Ficha”



Crônica - A série
Parte 1: “Uma mesa, uma carta e uma ficha”


Por MarcioCP

Senti na ponta de meus dedos a textura daquelas duas cartas. Lisas, frias. Olhei-as rapidamente, e, interiormente, um sorriso acendeu minha alma. Deitei-as novamente no feltro, obscuras aos meus oponentes, assim como obscuras eram minhas intenções para dali em diante.

A ambição maior dos jogadores de poker ao receberem seus pockets, a maior combinação de cartas pré-flop, agora em minha mãos, propiciaria à mim a vantagem que eu precisava àquela altura do torneio. Tantas mãos perdidas, tantas mãos foldadas, tantas mãos feitas esborrachadas em bad beats malvadas que teimaram em me castigar durante todo aquele dia, poderiam agora serem sanadas se eu soubesse usar corretamente aquele presente dos deuses do baralho.

Era minha vez no CutOff, à mesa, estávamos sete jogadores. Sete gladiadores prontos para derramar sangue numa arena verde... Não! Poético demais comparar-nos a gladiadores. Éramos naquela altura como buldogues, vorazes, raivosos, em posição de ataque, prontos para arrancar e mastigar todas as fichas do pobre desleixado que se julgasse o rei do nut sem ter sequer um parco valete de espadas.

Essa era a nua e crua verdade sobre os sentimentos de cada um naquela mesa semifinal.
Olhei o crupiê reagir a cada jogador. O UTG fez um call tímido, que foi seguido pelo Hijack que, ao pagar a blind, disfarçou um sorrisinho maroto, quase imperceptível.
A ação chegou a mim como uma bomba explodindo em meu colo, a bem da verdade, aquele dia havia sido tão sofrido que, repensando aquelas duas cartas, senti um tremor e duvidei bruscamente do poderio absoluto delas.

Um calafrio percorreu minha espinha, senti um desconforto na cadeira e comecei a me ajeitar no assento como quem tem uma pressa enorme em se levantar e fugir numa disparada sem direção, sem previsão de terminar.
Percebi quando o crupiê levantou os olhos, fixando-os em mim. Percebi de repente que todos na mesa me olhavam e, naquele momento, tive certeza que todos sabiam o que eu tinha.

Mil duvidas me passaram pela cabeça, mil tormentos antes experimentados amargamente sobre aquele feltro macio que agora grudava em meu antebraço suado.
Senti um vento passar a minha frente, e por um simples acaso, atinei que era minha própria mão em movimento nervoso e reflexivo como que um abanar a frente do meu rosto e, em seguida, vi a mesma mão, agora com vida própria, separar de meu pequeno castelo de fichas, duas big blinds, praticamente um slowplay.

Desesperei, tremi. Percebi, nunca faço slowplay. Todos sabem, sou um jogador seguro, agressivo e, apesar dessa qualidade ser em parte bem previsível, num bom dia rende-me situações extremamente +EV.
Aquele dia, todos a minha volta presenciaram exatamente o oposto. Exatamente um mal dia com mãos fortes, um mal dia em que tudo se voltava contra mim em um turn maléfico, em um river demoníaco.

Meus oponentes, agora, sabiam o que eu tinha, era mais que evidente. Um overpair no CutOff, uma jogada temerária esperando obter valor num pote grande, mas uma jogada assustada de um gato escaldado pelo dia -EV.

“Qual seria seu overpair?” “Seria um Ás e Rei e estaria ele tentando acertar um flop generoso?”
Sim, as seis pessoas em volta de mim agora sabiam que eu tinha uma mão forte. Tremi, pensei: “Não me renderá absolutamente nada essa mão e em breve cairei para algum par setado no turn ou river”.

Respirei fundo, olhei em volta, alguns sorrisos maliciosos, alguns olhares de pena, um ou outro de cara fechada, olhar semicerrado.
O Botão esperou alguns minutos e optou pelo fold, seguido pelo smallblind. A big blind, uma velha adversária de outros torneios, olhou, brincou distraidamente com as fichas. Parou de repente, e, olhou para mim. Rapidamente, ela separou 6 big blinds e colocou-as na mesa.

Percebi o crupiê levantando as sobrancelhas ao fita-la, incrédulo.
Devo dizer, de todos da mesa que eu preferia enfrentar, ela era a última escolha e, a primeira a evitar.
O UTG olhou fixamente para mim e, sem olhar para ela, empurrou 10 big blinds para a direção do crupiê.

Ao seu lado, os jogadores seguintes sistematicamente sorriram balançando negativamente a cabeça e entregaram suas cartas à mesa.
Senti o olhar daquelas três pessoas me secando, me escrutinando pela minha reação. O crupiê com um olhar de compaixão, o UTG com um olhar ferino, pontiagudo que atravessava minha alma e, aquela linda mulher no botão, balançando os cabelos e olhando fixamente em meus olhos, com um sorriso malicioso, porém, sedutor como fora na primeira vez que me encarou tantos anos antes.

Todos sabiam o que eu tinha, sabiam que eu dificilmente foldaria e que, provavelmente aplicaria um reraise, o que poderia mudar a estratégia de slowplay para um overpair agressivo pré-flop e talvez salvar um pouco a mão que eu havia estragado com um súbito momento de descontrole emocional.

Para minha total surpresa, novamente senti as palmas das mãos úmidas. Minha cabeça começou a girar por uns breves segundos e, surpreendentemente, minha mão, aquela com vida própria, correu a dar um temerário call na aposta corajosa ou desafiadora do UTG.

Da big blind, escutei um suspiro e um olhar incrédulo e enternecido quando ela anunciou o fold. Ela viu, sentiu, previu que eu levaria mais uma bad beat para a coleção que me assombrou durante todas as últimas horas.

O crupiê pegou o baralho, porém, agora, nenhuma emoção parecia exalar. Separou a carta de cima e puxou 3 cartas, virou-as e espalhou-as num flop seco.
Olhei para o flop, senti um calafrio, senti meus olhos apertarem e observei cuidadosamente a reação do UTG ao 2♠, 9♥ e 8♣, distribuído pelo crupiê.

Ele simplesmente levantou os olhos em minha direção. Frios, com gelo. Vazios como esperança perdida ao vento. Novamente poético? Novamente divagando em meus pensamentos? Foi assim, por isso me perdi nesta mão?

O UTG imediatamente arrastou para a mesa um valor que parecia ser de metade do pote.
Olhei incrédulo, assustado, triste até. O que era esperado de mim? Pagar e aceitar o meu destino ou foldar e tentar uma próxima vez?
De repente percebi, não somente os outros jogadores restantes, também uma multidão agora estava em volta da mesa olhando fixamente para mim. Gelei.

Novamente aquela entidade ligada a mim apenas pelo ombro se adiantou e empurrou um call sem mais, nem sequer menos. Minha cabeça era um turbilhão. Voltou a minha mente, três mãos jogadas naquele dia em que o jogador, agora no UTG, havia construído sua stack justamente contra mim e me aplicando bads ensandecidas, desestruturando minha confiança e meu poker.

O crupiê, então, caprichosamente puxou um 3♦ no turn.
Senti uma gota de suor contornar minha orelha e, acho que o UTG não deixou passar desapercebido. Mais uma vez, ele separou para o feltro o equivalente a meio pote.

Respirei fundo, olhei de lado, percebi os olhos da Big Blind me fitando e, li, profundamente em seu olhar, um pedido, uma desesperada súplica para que eu foldasse. Entendi imediatamente a gravidade da situação, porém, minha mão, mais rápida que meu raciocínio, já havia deslizado fichas à mesa num novo call relutante, porém abruptamente imparável.

De repente, meus lábios começaram a tremer. O crupiê, agora desalmado ao meu olhar apavorado, saca o river, um excruciante 5♠! E, nesse momento, o UTG se recosta na cadeira e...

Imediatamente, ele aplica um INSTALLIN!

Aquela era a gota d’água. Se restava algo de mim, de minha dissoluta coragem esvaíra-se por completo. Pedi uma contagem de fichas.
Para minha surpresa, mesmo pagando o allin do UTG, me restaria uma ficha pequena, uma única e simples ficha. Encarei aquilo como a gozação suprema do destino. Se caísse para mais uma bad nas mãos daquele jogador, seria histórico meu pesar e minha dor. Não havia fuga, todos sabiam. Largar a mão que todos tinham certeza que eu possuía não era realmente, e com o comprometimento com o pote, uma opção. Era tudo ou nada e, mais uma vez, minha mão, mais dona de si do que eu de mim, empurrou minha pilha para o crupiê. Exceto uma ficha!

Olhei aquela ficha, desamparada na mesa, solitária... assim como eu.
Levantei os olhos e o UTG exibia sorridente um 8♠ e um 9♦, formando dois pares no flop.
“Mostre seu par de ases, não seja tímido!” – Zombou ele.

Corajosamente, levantei a cabeça, olhei para a big blind e sorri amavelmente. Ela, ternamente me devolveu o sorriso.
Olhei o UTG e, virei minhas cartas.

Pude sentir na alma a dor que se seguiu, os gritos de êxtase, os lamúrias. Os palavrões. Estufei o peito e me levantei, triunfante, olhando para o incrédulo UTG que agora contemplava o meu pocket pair de 2 trincado no flop.

Naquele momento, o Crupiê contendo a gargalhada, avisou a todos que, a partir dali, começaria a mesa final e que todos teríamos um break até o dia seguinte.

Peguei a mão da Big Blind, e levei-a para casa. Naquela noite, o sexo com minha esposa, foi o mais fantástico de toda minha vida, ainda mais que, ambos estaríamos bem na mesa final do dia seguinte.




3 comentários:

  1. Que legal essa crônica! Fiquei aqui na agonia até saber o final!

    Meus parabéns!

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    1. Obrigado pelo comentário Bruno!!!
      Vamos incentivar o MarcioCP para que esta seja a primeira de muitas outras!!!

      LukeKM

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    2. Incentivem mesmo!!! Eu conheci o site de vocês faz poucos meses (jogo poker há 1ano e meio) mas já li todos os posts, começando dos primeiros... agora acesso diariamente para ver novos posts!

      Meus parabéns!

      Ah, adoro as tirinhas!!!

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