quinta-feira, 29 de maio de 2014

Crônica - Parte 2: "Poker Além da Imaginação"


Crônica - A série
Parte 2: “Poker Além da Imaginação”

Por MarcioCP


As apostas tinham sido altas durante todo o dia. No transcorrer da noite, meus vilões passaram a ser mais agressivos ainda, e, agora, madrugada adentro, uma verdadeira guerra era travada sobre o pano verde. 

Cada carta, cada mão, cada blefe, cada river, uma batalha ensandecida que abalava as estruturas, ora de um, ora de outro. Eu me perguntava a cada pocket, “Quando chegaríamos ao limite e colocaríamos no pote o que realmente nos interessava?”, e a resposta era sempre a mesma: no último suspiro.
Não que esse não estivesse próximo.
Eu seria o último a fraquejar, mas, naquela altura dos interesses eu havia finalmente encontrado adversários dignos das minhas artes e estratagemas, das minhas nuances e dos meus mais profundos malefícios na mesa.

Meu vilão olhava para mim com um rosto sereno, olhar profundo, nos lábios um leve sorriso confiante. Durante todo o trajeto de mãos até aquele momento ele não mudara um milímetro seu semblante. Já eu, por achar totalmente impossível ser desafiado da forma que ambos me desafiavam, estava agora temeroso do que poderia acontecer.

Sim, um convencimento, um muro de comprometimento com meu ego. Arrogância, tenacidade, mestre na arte da ironia, da indecência... ao mesmo tempo, sutil, insinuante, provocativo. Beiro o libidinoso e flerto com o onipresente angelical. Sou todo onipotente. Invencível. Um deus... porém, a minha frente, duas criaturas que me combatem com um afinco nunca antes demonstrado perante mim.
Eu podia enganar, enredar, enfim, usar de mil subterfúgios, mas eles se mantinham sempre a minha frente, inexplicavelmente.

As apostas eram altas, e seriam mais altas ainda. Eles pareciam cuidar para que se chegasse a tal ponto, apesar de que eu me acostumara a levar o jogo a esse ponto alto, me deixar ser levado agora, daquela forma, me incomodava. Muito!
Eu já havia perdido muito, perdido coisas importantes. Na última mão, eu havia chegado ao cúmulo de apostar meu teto. Meu mundo.
Com um valoroso 99 em minhas mãos, vi um triunfante flop se alinhar com um 3♠, um 6♥ e um 9♦.

Meu vilão havia aberto a mão com um raise pesado, ao que a minha vilã, uma senhora pequena, atarracada, de cabeça oval, e um olhar apertado, perturbador, havia respondido com uma 3bet.
Eu olhara para ela, e, mesmo eu, senti uma forte aversão àquela figura feminina. Ao que posso afirmar, até, era uma heresia chama-la de figura feminina. Feia, de expressões duras e transparecendo uma raiva latente, aquela coisinha seria o que, em filmes de terror, o espectador reconheceria como o diabo em pessoa. E ela parecia não se importar em incorporar tal papel. Jogava com tal destreza sobrenatural que, até a mim dava inveja.

Resolvi pagar a aposta, meu vilão fizera o mesmo e, agora, eu me sentia recompensando com aquela trinca de 9, a maior trinca possível da mesa.
Eu resolvi ver o que ambos fariam, fiz uma aposta pequena, pouco mais de ¼ daquele pote já grande. Meu vilão parou para pensar por alguns momentos. Seu semblante nada mudara, seu rosto em mármore, quando ele levou a mesa 3 vezes o valor que eu apostara.

Eu olhei para ele, que não podia imaginar a alegria dentro de mim pela aposta dele, a minha vez, eu iria dar-lhe uma cartada decisiva. Era meu momento!
Para minha surpresa, aquela pequena diaba, sem nem parar para pensar, empurrou para a mesa um valor superior ao dobro do pote. Ela acomodou os dois cotovelos sobre a mesa, apoio a horrenda cabeça em seus punhos fechados e ficou me fitando, tão profundamente que me senti nu.

O que era ela? Quem era ela? Como tinha a audácia de ir tão longe a minha frente?!
Olhei para tudo que eu tinha na mesa, e de certeza, não teria como cobrir a aposta dela.
Queria, decerto, acabar com ela ali mesmo. Fulmina-la com a certeza de ser totalmente derrotada. Mas, ela ainda possuía muito, e eu pouco.

Ela olhou para mim, pareceu entender meu dilema.
— Querido! Não se sinta acuado. Decerto, você possui algo mais valioso do que o que tem sobre a mesa para me fazer correr. Tenha coragem.
Sim, eu sabia bem do que ela estava falando. Meu mundo, meu teto, minha casa. Meu reino. Mas, se perdesse isso, pouco me restaria. Algo que teria relevante importância para me salvar. Sim, ela tinha razão. 

Era o momento de ser corajoso, de ter um brio, uma “qualidade” que nenhum jamais atribuiria justamente a mim.
— Eu sei do que você está falando. — Disse-lhe abrindo um sorriso malicioso que, até mesmo a mim, surpreendeu. — Se achas que não tenho a coragem devida para arriscar tal prenda, engana-se. É claro, você concorda que, o que tenho a apostar, excede em muito suas apostas.
— Que seja o principal, então. Que os ganhos permaneçam e isso lhe permita tentar recuperar... caso perca, é claro.

Percebi um tom de ironia venenoso no final daquela frase. Algo acendeu em mim, mas, naquele ponto, não podia mais voltar atrás.
— Que seja! Eis o contrato. — Estendi sobre a mesa um documento amarelado, grosso, com páginas tão importantes quanto minha própria existência.

Meu vilão, para minha surpresa, desferiu um sorriso. Algo tão antinatural para aquele rosto que, por um momento, ele me pareceu outra pessoa. Não, talvez, não uma pessoa. Talvez algum ser, algo intangível que não consegui identificar antes que ele voltasse a ostentar a seriedade nos lábios.

Agora a sorte estava lançada. Coloquei minhas cartas na mesa. A pequena diaba, sem tirar seus olhos dos meus, esticou seu bracinho disforme e virou as suas.
Eu, agora, olhava o par de 3 ostentado por ela como se fosse uma bomba atômica, porém, nada mais que um tiro de festim.

Sorri, e, enquanto se puxava o turn, ela abriu um sorriso maior.
Observei um 6♦, colocado na mesa e, respirei fundo regozijando-me com meu full house imbatível! Ela, observei, sorriu mais ainda.
Então, incrédulo, vi o river abrir com um 3♥! Ela fizera uma quadra. Mas, seu rosto continuava igual, como se ela soubesse o tempo todo o desfecho que aquela mão teria!

Recostei-me na cadeira, estupefato.
Aquele foi o momento mais duro que já tive.
Agora, pouco me restava. Olhei para ambos, seus semblantes agora sérios esperando minha resposta a sua proposta.

Uma última mão, eles colocariam tudo no pote, e eu colocaria o que me restava.
— É uma proposta justa, — disse ela. — colocamos as almas na mesa, e mais tudo que você perdeu e mais tudo que nós temos. O vencedor, fica com tudo.
— Almas? — questionei.
— Sim, é o que lhe resta. Sua chance.

Olhei a pequena diaba, assustadora. Parei por um instante para lembrar de tudo que eu já havia vivido. Desviei o olhar por um segundo e aceitei.
Os dois sorriram, todos recebemos nossos pockets.

Respirei fundo, sorri. Eu sou mais eu, eu sou LÚCIFER! Não serei derrotado por dois humanos caquéticos! 

Estendi meu par de ases na mesa e sobre eles, coloque meus olhos em chamas!
Os dois, se entreolharam, voltaram seus olhares para mim e depositaram sobre a mesa, um par de reis e um par de damas.
Eu queria ver o medo nos olhos daqueles dois, o horror da minha danação eterna que se recairia sobre os dois.
O flop, em um estrondo, trouxe um A♥, uma Q♠ e um K♦!
Gargalhei, como gargalhei e assombrei milhões de demônios por eras sem fim. Queria açoitar as almas daqueles dois, fazê-los sofrer pela eternidade todos os suplícios e dores imagináveis
pelo limitado conhecimento humano e mais além, todos possíveis pela minha infinita maldade e podridão!

A sala tremia, eu antevia tê-los para mim para o que quisesse. Saborear seu sofrimento. Quando...
Toda a sala estremeceu, todo o caos provocado pela minha ira e pelo meu desejo de dor simplesmente se esvaíram como agua entre os dedos.
O Turn, um retumbante K♥, e o river, uma gloriosa Q♠.

— Bem, agora, — começo a dizer ela. — você nada mais é do que um pobre demônio desempregado e, o inferno tem dois novos senhores!
Levantei-me e caminhei de cabeça baixa para a porta ao som das gargalhadas daqueles dois mortais infames. Não mais um senhor, não mais um monstro. Olhei-os da porta e sorri.

— Divirtam-se, crianças. Mas lembrem-se, eu sou aquele que sempre volta. — Fechei a porta sentindo as gargalhadas morrerem ao passo que no meu rosto renascia um sorriso lúgubre. 


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