domingo, 3 de agosto de 2014

Crônica - A série - Parte 7: “Caipira”


Crônica - A série
Parte 7: “Caipira”

Por MarcioCP

Por vezes, escutava as palavras dela. “Você precisa descansar, relaxar. Tire férias! Saia dirigindo por ai, sem rumo... Vá conhecer as pessoas.”
Agora, anos depois, eu podia realmente escutar e obedecer essas palavras. Era uma pena que ela não estivesse mais comigo.

A estrada era um tanto acidentada, sempre chacoalhando mas, a paisagem e a paz faziam que me sentisse imensamente bem com a lembrança dela. E quantas pessoas e lugares tão especiais eu havia conhecido nestes quase 6 meses na estrada. De um canto ao outro do país, eu havia feito amigos, conhecido comidas novas, encontrado pessoas estranhas e maravilhosas.
Acho que, por todas essas lembranças, a volta para casa, agora, trazia um sentimento de pesar. Queria poder continuar, afinal, tanto mais para ver e descobrir... Eu estava encantado.

Divagando sobre isso, não me apercebi que havia entrado em uma cidadezinha de interior. Já estava há muito tempo de volta ao estado de São Paulo, mas ainda levaria quilômetros até ver a Paulista novamente. A pouca luz do entardecer me lembrou duas coisas, a fome e o cansaço. Um ou outro poderiam me sugerir parar ou pernoitar, porém, os dois somados tornavam isso imperativo.

Olhei o assento do passageiro, restavam alguns vestígios de um bagunceiro viciado em junk food, coisa que eu sabia, um dia, iria me matar se eu não mudasse radicalmente meus hábitos alimentares. Porém, vendo no fim da rua um pequeno restaurante, percebi que esse dia não seria hoje.

Estacionei, olhei em volta, observei aquele clima rural de cidade pequena que eu, as vezes, tentava evitar. Entrei.
Haviam mesas aconchegantes espalhadas, pequenas cadeiras acolchoadas. Não estava cheio, pelo contrário, percebi que além de mim, havia apenas um pequeno grupo de senhores numa mesa perto de um janelão.
Estranhamente, procurei me sentar perto deles. Confesso, as pessoas me deixam curioso. Seus hábitos, seu jeito de pensar, de olhar. 

Um rapazinho... ou dois, não sei, a julgar pelo tamanho da barriga que carregava, me atendeu sorridente. Pedi um “bauru”, uma coca e batatas fritas. Não, definitivamente, aquele não era o dia da minha redenção alimentar.

Enquanto esperava, observei o grupo e fiquei de escuta em sua conversa.
Um senhor, com uma barba serrada, um pequeno boné. Trazia no canto da boca um cachimbo Churchwarden igual aqueles que eu havia visto quando joguei um torneio na Alemanha. Imaginei que ele estaria na casa dos 60, 60 e poucos anos, talvez. A seu lado, um outro senhor, bonachão, nariz largo e fundo, grandes orelhas, e um sorriso, aparentemente, bem franco. Estranhamente, aquele grupo começou a cativar minha atenção.

O terceiro membro era uma mulher. Em sua época, talvez ela tivesse sido bela, porém, hoje, tinha um rosto cansado, marcado com muitas rugas que fizeram-me imaginar que sua vida havia sido tão dura quando a expressão que ela usava de tempos em tempos para olhar na direção do senhor do cachimbo. A certa altura, o rapazinho “enorme” que havia me atendido, havia se aproximado da mesa deles, com uma garrafa de cachaça e um baralho. Instintivamente, eu sorri. 

Não sei se algum deles já havia notado meu interesse em seu grupo, mas de repente, levantei os olhos e aquele senhor do cachimbo me encarava, sorrindo.
— O moço joga “tranca”? — Perguntou-me.
— Não, lamento. Meu jogo é outro. Sou jogador de poker.
— Oh, claro. Há essa moda toda de poker hoje em dia. Ouvi dizer que é emocionante.
— É um pouco mais do que isso, senhor. Eu até vivo disso. — Respondi de forma um tanto orgulhosa.
— Então, “seu” moço, é um daqueles jogadores profissionais que aparecem na TV? — Perguntou a senhora enrugada, denotando um certo desdém por mim.
— Não, Cora. O moço é um “atleta”, ouvi que esse poker, agora é um “esporte”.
— O senhor está certo. — Me apressei. — Em todo o mundo foi comprovado que o poker é um jogo matemático de estratégia, como xadrez, por exemplo, e não um jogo de azar como bingo ou roleta.
— Tolice! — Rosnou a senhora. — É só mais um jogo de cartas.
— Tenha modos, Cora. — Disse o senhor bonachão, entrando pela primeira vez no assunto. — Me diga, moço... Estamos aqui, todos os dias, sentamos e jogamos nossa tranquinha, mas hoje, o coronel, parece, nos abandonou. O moço não quer se juntar a “nóis” e nos ensinar esse “poker”?
— Ora, eu ficaria muito feliz. — Disse sorrindo, já saudoso do meu querido poker. Achei, que poderia me distrair um pouco.


Puxei minha cadeira para a mesa deles, então, o senhor do cachimbo passou a fazer as apresentações. Seu nome era Olavo, Dr. Olavo, que, segundo Dona Cora, havia feito o parto de praticamente todos na cidade desde o tempo de Noé, o que fez com que os dois rissem, embora ela própria manteve o semblante fechado.

 Do outro lado, bonachão, “seu” Alcebíades, dono daquele restaurante.
— Essa “mocinha” adorável é a Dona Cora, proprietária do bordel mais antigo da cidade. Dizem, que a melhor menina dela era Maria Madalena, claro, antes que nosso senhor a redimisse! — aproveitou, rapidamente, o Dr. Olavo se vingando. Todos riram, eu me senti meio desconfortável mas, esbocei um sorriso meio amarelo.
— Não fique “melindrado”, seu moço, — começou Dona Cora, fazendo um inútil esforço para ser simpática. — nóis aqui sempre rimos um do outro, pode se fazê a vontade, sem medo.

Aceitei a hospitalidade da tentativa e passei a tentar explicar para eles, o mais basicamente possível como se jogava poker. Falei do pocket, das cartas comunitárias e passei a explicar as rodadas de apostas.
Nesse momento, um homem com chapéu de “cowboy”, usando um terno que, a primeira olhada, me pareceu italiano, do tipo “sob medida”, se aproximara e pairava pela mesa, observando com uma expressão de azedume.

— Coronel Tiãozinho! Se achegue, o cumpadre tá atrasado pra tranca. — Reclamou o Dr. Olavo. — Esse moço gentil tá ensinando pra nóis o jogo de poker. Ele é um campeão desse “esporte”. Tem até esse bracelete chic pra provar.
O coronel puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado. Virou o rosto em minha direção e, como que por mágica, a expressão de azedume deu lugar a um sorriso vivo, caloroso, como se quisesse me passar o sentimento de ser meu amigo há décadas.
— Ora, então seu moço, explique de novo que eu quero jogar. — Disse o, agora, alegre Coronel.
Expliquei novamente, desde o começo, e então finalizei com os tipos de mãos.
— Como eu disse, se precisarem eu os ajudarei a lembrar, temos sempre os dois pares, e tudo mais, claro. Mas temos os jogos maiores, como por exemplo a sequência, ou straight, onde fazemos jogo com as 5 cartas em sequência numérica, isso os senhores já devem conhecer... e, o flush, claro...
Nesse momento, o Coronel Tiãozinho levantou a mão para me calar, virou o rosto e gritou:
— Barnabé! O moço campeão tá com sede, tráiz uma crush pra ele.
Corei, sorri amarelo novamente.
— Não, Coronel. Eu quis dizer flush, é o nome da combinação de 5 cartas com o mesmo naipe.
Todos riram, e eu corei novamente.
— Eu sei o que é um fRush, seu moço, tô lhe fazendo brincadeira, mai vamo jogá, que já se faiz tarde, até meus boi já tão durmindo!
— Seus bois?
— Isso mesmo, moço. Se o sinhô mordê um pedaço de carne na cidade, é de boi meu. Se mordê um pedaço de carne em praticamente todo canto do Brasil, é de boi meu. Até em outros países, vai mordê pedaço de boi meu. — Explicou sorridente o endinheirado Coronel.
“Vamos jogar, então!”, falei com um novo sorriso amarelo.

Por uma hora, uma hora e meia, jogamos amigavelmente. Eles insistiram em fazer pequenas apostas, e eu, pegando leve, deixei que eles esporadicamente ganhassem algumas mãos.
Lá pelas tantas, o Coronel se mostrava com cara de tédio. Olhou para meus ganhos e resolveu que era hora de me botar no meu devido lugar.
— O moço da cidade tá se saindo bem. Mas eu sou homem sério. E lhe dizê, gostei desse braceleti, mas já vi que é coisa que o moço num vende. Mais, o moço é jogador. Jogador, se arrisca. Então, me diga, seu moço, é jogador de apostar esse seu bem precioso? Se for, nóis bota duas vaquinha na mesa contra esse braceleti.
— Olha, Coronel, não seria justo. Eu confesso que, até agora, estou apenas brincando com vocês. Deixei vocês ganharem algumas mãos, lhe peço desculpas. Mas, não quero lhe causar um prejuízo de verdade nem lhe enganar. Vocês mal sabem jogar meu jogo e, desculpe Coronel, mas, modéstia à parte, nesse jogo, eu já dobrei muito cara bom e, até em outros países.
— O moço fique tranquilo, — Se adiantou o Dr. Olavo. — Em nenhum momento nos enganou. Claro que o senhor sabe melhor desse jogo que nóis, mas pra nóis é diversão, ninguém aqui tá enganando ninguém...
— É verdade, seu moço campeão. — Disse o coronel. — Se é por dinheiro, não si preocupi, que dele, tenho mais que o bastante pra não fazer mínima questão. Vamo jogá? Ou o moço tá cum medo de perdê pra uns caipira?

As gargalhadas deles ecoaram pelo restaurante todo. Até mesmo a Dona Cora gargalhou dessa vez. Finalmente, eles atingiram meu orgulho de jogador.
— Então tudo bem, Coronel. Já que é assim, vamos jogar, só que, meu bracelete vale, para mim, muito mais que o seu dinheiro para o senhor. Pelo que entendi, claro. Então, se realmente quer brincar dessa brincadeira, duas “vaquinha” nem de longe é o bastante. Mas, também não tenho o que fazer com vacas, então, tentemos pelo preço de, digamos, 100 bois! Acho que isso torna nossa brincadeira prazerosa pros senhores.
Olhei a cara de espanto deles, e, confesso, quem gargalhava por dentro, agora, era eu. O Coronel olhou para cada um na mesa, sorriu:
— Tudo bem, seu moço campeão. Que seja o preço de 100 bois, em dinheiro vivo. Barnabé! Dê as carta! — Gritou.

O Barnabé foi gentil comigo. Olhei meu par de T, e logo que ele colocou o flop, senti-me envergonhado do que estava para fazer. T♥, 4♦ e 5♣. Ao meu lado, o Coronel começou a cumprir seu papel.
— Aposto 500 fichas!
Eu olhei as tampinhas de garrafa que, pouco antes de começarmos, Barnabé tinha marcado com uma caneta, e sorri. Eu havia aberto com raise pre-flop, na intenção de mostrar para eles que realmente eu não iria brincar. Apostara 350 fichas. Todos eles haviam dado call. Olhei para a aposta do Coronel no meu flop trincado. Apliquei uma 3bet.
— O moço tá querendo me amedrontá! Eu pago!
Para minha surpresa, Dona Cora deu call. O Dr. Olavo desistiu, assim como “seu” Alcebíades.
O Barnabé puxou um 2♦ no turn. Então, o Coronel, afoitamente, separou metade das “tampinhas” que tinha e empurrou para o centro da mesa. Eu sorri, e empurrei a mesma quantidade, num call satisfeito. Dona Cora soltou uma careta pavorosa, e, empurrou mais tampinhas para o meio da mesa.
— Barnabé! Manda o river! — Gritei sorridente.
Obediente, Barnabé puxou um 5♦. Meu full house era supremo!
O Coronel olhou pra a mesa. Pensou por um instante e bateu na mesa com a ponta dos dedos.
— Não, Coronel. Lamento, mas agora quem lhe pergunta se o senhor é um jogador de coragem sou eu. Allin! Eu aposto tudo.
O Coronel arregalou os olhos! Dona Cora, novamente fez uma careta, mas para minha surpresa, empurrou todas as tampinhas que tinha para o meio da mesa.
— Então, Coronel? — Meu sorriso era quase maléfico!
— Sou muito homi de apostar, seu moço campeão. — Começou com um sorriso cínico no rosto. — Eu tenho 44, fiz um full house, seu moço campeão.
— Que pena, Coronel! — Mais malicioso e cínico foi o meu sorriso. — Eu tenho TT, meu full house é maior que o seu. Parece que eu ganhei o equivalente a uma poupança de 100 “vaquinha”!
Eu já ia começar a rir, quando senti a mão de Dona Cora em meu ombro e a percebi, com nariz empinado, olhos apertados me olhando de lado e forçando um bico com aquela boca enrugada.
— Calma, seu moço. Eu ainda num disse o qui tenho. Pro moço num fica cum sede, eu tenho um straight CRUSH com A3 SUITED! E parece qui EU qui ganhei um lindo braceleti!
Meus olhos se arregalaram, ouvir a palavra “suited” fez estalar algo em mim, eu não havia utilizado o termo durante a noite toda. Todos eles gargalhavam sem parar! Novamente, Dona Cora colocou a mão sobre o meu ombro.
— Seu moço, num fique assim. A verdade, é qui, nois aqui já jogava Texas Holdi antes mesmo do sinhô nascê!


Fim!

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