domingo, 17 de agosto de 2014

Crônica - A série - Parte 8: “Pai e Filho”


Crônica - A série
Parte 8: “Pai e Filho”


Por MarcioCP

Arregalei meus olhos ao ver aquele 3♥ no river.
Eu observava atentamente cada movimento, cada bet, cada raise, cada 3bet, cada check. Aquele torneio havia sido uma aula em cada mão. Na mesa, ele! Imponente, sério, escondendo suas emoções com a maestria que nenhum outro que eu havia visto jogar ou veria futuramente.

Era uma marca. Seu boné preto, sua camisa com gola fechada, e seu blazer escuro. Seus movimentos eram impecáveis, sua educação, seu porte. Havia ganho quase tudo que havia para um jogador profissional de poker ganhar. Enquanto que eu, menino, depois adolescente e sempre um fã, corria o mundo ao seu lado. De mesa em mesa, eu podia testemunhar toda a história que se desenvolvia, criando uma lenda até seu ápice naquele torneio. Durante toda disputa, encostado num canto, eu fiquei observando e sonhando, quem sabe, um dia ser tão bom quanto ele.

Já era noite alta e, eu menino, era consumido pelo sono. Mesmo assim, era uma certeza, tanto para ele quanto para mim, que eu não arredaria pé dali até terminar aquele heads up. Meu pai, uma verdadeira lenda do poker. Eu, um menino sonhador, imaginando o dia em que estaria ali, sentado com as cartas na mão como ele. Talvez até mesmo frente a frente com ele e, quem sabe, derrubando aquele muro que escondia suas emoções, forçando-o a deixar transparecer, por mim, o mesmo orgulho que eu tenho por ele.

O sono me deixava tonto, mas a emoção das mãos fortes me despertava por uns minutos.
Essa mão, a adrenalina da disputa acirrada, finalmente havia me tornado desperto. Meu pai abrira a ação com um raise pré flop agressivo de 3,5 BigBlinds no botão. Seu adversário, que antes já jogara outros heads ups contra ele, sabia que o único jeito de enfrentar meu pai era ser mais agressivo do que ele. Voltou, então, um reraise de quase o dobro da aposta de meu pai.

Meu pai, experiente, e conhecendo muito bem seu adversário, optou por um call e ver o flop. Ele estava na frente em fichas, podia se dar ao luxo de buscar armadilhas para seu vilão. Separado o flop, três cartas secas abriram um enorme leque de possibilidades para ambos. 2♣, 7♠ e Q♥.

Dono da ação, o vilão apertou soltando uma bet de pouco mais de 2/3 do pote. Meu pai sequer levantou a cabeça, respondeu com uma 3bet seca. O vilão, parou por alguns momentos, ajeitou as fichas uma, duas... três vezes. Tomou a decisão de continuar. Fez call.

O movimento rápido do crupiê, separou uma carta virada e então, abriu o turn. Um 5♥ adornava a board. O vilão olhou, novamente a ação estava com ele e, ele, novamente brincava com as fichas, agora, mais nervosamente. Ele separara o equivalente à metade do pote e empurrara para a mesa.
Meu pai, friamente, colocou as duas mãos em sua pilha de fichas. Permaneceu imóvel por 2 ou 4 minutos, fez call.

Aquele 3♥, então, aninhou-se no river. O vilão, fazendo uma careta, deslizou toda sua stack de fichas para a mesa num allin agressivo.
Do meu cantinho, senti um arrepio correr meu corpo. Eu vi a sequência de Ás até 5 se formar na mesa tinha o pressentimento que o vilão encurralava meu pai finalmente. Eu tinha certeza que meu pai tinha observado o mesmo que eu. Era a hora de foldar, tentar recomeçar a batalha nesse heads up. Sobreviver. Para minha surpresa, meu pai anunciou call!

Me aproximei da mesa rapidamente, em tempo de ver ainda o vilão virar um A4 suited de paus, formando assim o que eu já esperava, uma sequência no river. Meu corpo estremeceu de tristeza. Sabia que, apesar do controle absoluto de suas emoções, meu pai sofreria em dobro ao ser derrotado em frente ao seu filho. Lentamente, levantei meu rosto triste em direção ao meu pai.

Quão surpreso fique, olhando um homem com o rosto tranquilo, impassível que, tirando o boné e colocando sobre a minha cabeça, deitou sobre a mesa um A4 também, porém, para explosão de todos, suited de copas, formando não somente uma sequência, mas também um flush com a dama na mesa. Eu sorri, meu pai me olhava fundo nos olhos, uma leve piscada e um pequeno repuxar no canto direito do lábio eram o máximo de sorriso que ele se permitia. E era essa a imagem que ficaria gravada em minha mente pelos anos que se seguiriam.

Era curioso que, agora, quase quinze anos após aquela mão, eu revia tudo passar diante de meus olhos. Eu, ali, finalmente sentado numa mesa de poker, finalmente um campão como meu pai, finalmente encontrando de frente o meu sonho de menino, finalmente, eu, frente a frente, num heads up, com ele!

Já havíamos jogado muitas vezes, afinal, ele me ensinou tudo o que eu sei. Jamais ele sequer cogitou em amolecer para mim. A bem da verdade, raramente eu conseguia ganhar dele. Foram anos e anos assimilando, aprendendo e, agora, finalmente eu estava num heads up realmente importante. Valia um bracelete e uma montanha de dólares, mas, isso tudo, naquele momento, perdeu toda a importância diante do sonho de disputar justamente contra ele. Não seria fácil, mas era o momento de mostrar a ele que seu filho, bem... era seu filho.

Durante meia hora, ele me encurralou. Agressivo, eu conhecia seu jogo tão bem quanto ele conhecia o meu. Ele foi me fatiando, eu passei a correr, fugir. Meu pai sabia exatamente como me derrotar. E sem dó, ele estava fazendo exatamente isso. Em dois momentos, tive um pouco de sorte e consegui me reerguer, fatiando-o com dois bons runner runners. Foi somente assim que sobrevivi ao bombardeio imposto por ele durante meia hora. A partir dali, houve uma inversão. Eu passei a jogar como ele, agressivo, pressionado-o. Ele nada mudara. Sua expressão era a mesma daquele heads up anos atrás, a mesma que não permitia a ninguém saber suas emoções, mesmo em casa, mesmo com sua família.

Por um momento, achei que havia deixado ele em situação dificil, que a partir dali poderia ganhar, mas, em pouco mais de 3 mãos, lá estava meu pai novamente dono da mesa. Lá estava eu, novamente forçado a correr, fatiado, desolado, quase entregue. Ele percebeu o momento de fechar o jogo, me derrotar.

Forçou uma mão pré flop, eu, sem muito que fazer, paguei. Possuía um Q♣ e um 9♥, já estava numa situação de dar push caso batesse um ou outro na mesa. Para minha alegria, ambos bateram, num flop caprichoso com Q♠, 4♦ e 9♣. Meu pai, mantendo o ataque, aplicou uma bet de 40% do pote. Eu, avaliei se o push seria ali a melhor opção. Meu pai me conhecia, se eu desse o push, provavelmente ele sem dúvida daria call. Já outras vezes ele me pegara numa situação semelhante e me obrigara a dar push com o que batesse no flop, porém, se ele tivesse algo menor que o Q, ele foldaria sem hesitar para não me deixar crescer novamente.

Eu fiz call, no turn um 2♦. Meu pai parou e me olhou. Percebi que ele pressentiu algo. Check!
Eu também fiz check. O river deitou na mesa um K♦, meu pai, impassível fez check. A ação era minha, era o momento de tentar arrancar mais fichas. Apostei um pouco mais de 1/3 das fichas que me restaram. Meu pai levantou a cabeça e, em resposta, anunciou allin. Não me restava alternativa senão dar call.

Meu pai se recostou na cadeira e recolheu as fichas excedentes, após mostrar um AK offsuited com top pair no river. Eu havia voltado ao jogo! Agora, nossas stacks eram praticamente iguais. Por mais 10 ou 15 mãos, continuamos duelando acirradamente. Eu agora, estava à frente.

Meu pai estava no botão, abri a ação com um raise de 2,5 Bigblinds. Em resposta, ele aplicou uma 3bet light, e eu, afoito, apliquei uma 4bet.
Ele, finalmente respondeu com um call e fomos para o flop. A♣, 9♦, 3♠. Eu fiquei atento, afinal, sabia bem que meu pai não faria call numa 4bet a toa. Olhei meu pocket, a possibilidade era grande. Abri com um raise de metade do pote. Novamente, meu pai aplicou um 3bet ao que respondi com uma 4bet e ele, novamente, fez call.

Àquela altura, a mão se tornara uma queda de braços entre ele e eu. Percebi que era agora, a mão definitiva. Perdesse ou ganhasse, a conclusão daquele sonho estaria ali.
Um A♠ balançou o turn! Senti aquele arrepio pelo corpo novamente, como anos antes eu sentira. Passei o dedo sobre minhas cartas e dei check. Meu pai, extremamente agressivo, colocou na mesa metade de sua stack. Fiz call, lento, temeroso.

Não havia volta. Eu aceitaria o resultado, fosse qual fosse. Então, toda aquela emoção de menino voltou a minha mente, aquele mesmo 3♥ aninhou-se no river. Não pude conter de solar um pequeno sorriso com tantas lembranças me tomando justamente naquele momento de desfecho. Abracei todas as minhas fichas e empurrei na mesa, num allin. Após a contagem das pilhas e constatado que se ele ganhasse me sobraria menos que uma Big Blind, meu pai olhando em meus olhos, declarou call.

Olhei a mesa, os dois Ases imponentes. Meu pai, agressivo como nunca, não seria surpresa ele ter par de ases na mão e ter feito uma quadra de ases. Calmamente, deitei na mesa um par de 3, declarando quadra de 3.
Meu pai levantou-se e se inclinou sobre mim, olhando-me fixamente nos olhos.
— Você fez um bom jogo, filho. A única coisa que posso lhe dizer nesse momento é: “Obrigado”.
Gelei, tinha certeza agora que ele mostraria um par de ases.
Ele baixou os olhos e virou suas cartas. Um A9 formando um fullhouse no turn. Ele, novamente, levantou os olhos e disse:
— Obrigado por ganhar e me tornar o homem mais orgulhos do mundo.

Aquela foi a primeira vez, em uma mesa de poker, que vi no rosto de meu pai se abrir um sorriso completo e sincero e não apenas a nuance de um sarcástico sorriso vitorioso. E foi, em toda a minha vida, a primeira e única vez que vi uma lágrima em seus olhos.

Fim!

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