quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Crônica - Parte 10 - "A Lenda do Poker"


Crônica - A série 

Parte 10: A Lenda do Poker 

Por MarcioCP

Debruçado sobre o balcão, meus olhos estavam fixos no nível da cerveja que subia na caneca a medida que o barman inclinava a garrafa. “Muita espuma!”, pensei. Como que lê-se meu pensamento, ele inclinou um pouco a caneca até enchê-la, de forma a fazer um bebedor como eu abrir um largo sorriso. Segurei a aba da caneca, me preparando para um grande e aliviante gole, quando no caminho à minha boca, parei a caneca. Com uma careta, coloquei a caneca de volta no balcão e, ao seu lado, deitei uma nota de 5, acenando sorridente para o barman. 

Em meu bolso, o celular havia vibrado, um aviso de que estava para começar. 
Perambulei de uma rua a outra, dobrei esquinas, subi degraus, olhei o elevador... Um senhor de chapéu estava parado ao meu lado. Todo trajeto do pub até o saguão daquele hotel, eu tinha feito quase sem notar, envolto nas imagens, nas sensações, nas lembranças. Porém, aquele senhor, velho, meio arqueado, com um rabo de cavalo todo branco fugindo do chapéu e se estendendo pelo comprimento das costas, foi a única coisa que me trouxe de volta a realidade. 

Estávamos, os dois, parados esperando o elevador, ele girou a cabeça em minha direção, seus olhos escondidos por óculos escuros apoiado num enorme nariz com ponta quadrada. Seu rosto, enrugado, esboçou um sorriso no qual pude ver dentes amarelos de nicotina que num breve relance desapareceram. A porta do elevador se abriu e ele entrou na minha frente, apertou o botão do 18º andar e se afastou para que eu apertasse o botão do meu andar. Fiquei parado, o elevador fechou, ele, então, virou-se e ficou me olhando. Durante o trajeto do elevador, aos poucos um sorriso de lado foi brotando, cínico, meio zombeteiro. Permaneci estático, tentando não demonstrar qualquer reação emocional àquela figura patética e bizarra que, agora, fazia de mim alvo de toda sua atenção dentro daquele minúsculo elevador. 

Alguns momentos depois, a porta do elevador se abriu, ele esperou um momento para que eu me adiantasse e saísse primeiro, eu fiz o mesmo. Naquele impasse, ele deu um sorriso de desdém e se movimentou, saindo do elevador e ganhando o corredor. Eu, dois passos atrás, segui-o até a porta do apartamento 1804. Parei a seu lado. Pelo canto do olho, podia perceber aquele sorrisinho cínico no canto da boca do velho. 

Um homem atarracado, com um blazer estilo feito sob medida, atendeu a porta com um largo sorriso. 
Imaginei que vocês dois já se conheciam. 
— Eu nunca vi este jovem em toda minha vida. — Desdenhou o velho, dando de ombros e entrando. 
Conheço o velho pela fama, uma lenda, dizem. Chamam ele de “Imortal”. Você sabe bem porquê estamos aqui. — Falei. 
— Sei, sim. Entre, preparamos tudo como se deve. 
Entrei e minha primeira visão foi a mesa preparada. Fichas, baralhos e um outro homem já sentado organizando tudo. 
—Vamos ao que interessa! Sentem-se, vocês dois sabem porque estão aqui e a gravidade. — Anunciou o homem de blazer. 

Olhei em volta da sala, outros dois homens estavam em pé, com os braços cruzados, caras fechadas, um em cada extremidade da sala. Sentei-me e, na mesa, apenas eu, o velho e o crupiê que havia terminado de organizar a mesa. 
Rapidamente, ele embaralhou e distribuiu a primeira mão... 

As horas se passaram, minhas fichas dobraram, triplicaram, caíram pela metade, metade da metade... novamente dupliquei... novamente caíram... e assim por diante. Eu passara a olhar de forma diferente para aquele velho estranho após as primeiras 3 horas de jogo. A forma como ele me segurava, me impedia de ganhar parecia quase que mágica. Sempre que eu achava que o havia pego, ele simplesmente se reerguia e se colocava novamente em pé de igualdade em fichas, me ultrapassava e eu tinha que começar tudo novamente. Após sete horas de jogo, isso se tornou extremamente irritante. Aquele homem era uma verdadeira lenda em seu tempo, ganhara tudo, de todos. Na verdade, eu quase apertaria sua mão naquele elevador se... se a circunstância fosse outra... 

Eu olhava para ele, ele se limitava a sorrir e, novamente, me jogava em uma armadilha que me forçava a correr ou me arriscar a perder todas as minhas fichas. 
Em certo momento, ele se levantou, começou a rir, empurrou todas as suas fichas num allin. 
Na mesa, um flop com 6♣, 9♣ e 8♣... o turn completou com um 7♥, me deixando acreditar que talvez ele tivesse uma sequência com T ou 5, dada a agressividade com que jogou toda a mão, porém, sem saber, estando batido pelo meu A4 de paus, meu flush! Mas, o river, ingrato como sempre, colocou um 7♣ na mesa. Nesse momento, foi que ele se levantou e anunciou allin gargalhando. 

Eu havia esperado que ele pagasse um allin meu, porém, agora, pagar um allin dele, perante a sua atitude, tornava-se algo indigesto. Com aquele 7♣, ele poderia ter uma sequência, um fullhouse, uma trinca... não, uma trinca ele não daria allin... O quê, meu Deus?! Por um momento, me desesperei... A alegria dele era demasiado irritante. Percebi, então! Ele tinha um Straight Flush! Ele tinha o T♣ ou o 5♣! 
Ao vislumbrar essa possibilidade, dei fold automaticamente. Recostei-me na cadeira sorrindo para ele. Eu havia escapado da sua armadilha.
Novamente ele se sentou, olhou para mim, abriu um largo sorriso e deitou na mesa um K2♦ suited. O sorriso morreu em meus lábios, meu sangue ferveu... ele conseguira me tiltar! 


— Muito fácil... Muito fácil, jovem... Tão fácil... Chega a ser infantil. Me disseram que você era bom, mas até agora, só fiz brincar com você numa queda de braço entediante. Disse ele, debochando. 
Você é um “velha guarda” astuto, cheio de segredos, cheio de artimanhas... foi assim sua vida toda? Blefando, fazendo pantomimas? Fingindo ser quem não é? Você é uma farsa! Já fomos longe demais! Estamos jogando há 9 horas! É hora de terminarmos! 
— O que propõe? Um Allin? — disse ele e, juro, pude ver a malícia escorrer de seus olhos. — Acha que podemos decidir simplesmente na sorte ao invés de na habilidade do poker? Tem tanto medo assim de mim? 

Aquelas palavras me atingiram como um raio. Eu havia tiltado ao ponto de fazer o que ele queria. Desafiá-lo era a coisa mais idiota que eu poderia fazer naquele momento. 
Vamos, garoto. Você tem algo em mente. Alguma hora temos que terminar. Só um de nós pode ganhar, sabemos o que está em jogo. 
Eu queria muito ganhar. Ganhar de uma lenda. Mas, como ganhar dele? Ele já fora um grande campeão e, havia me mostrado nas horas de jogo que, apesar de ter parado há muito tempo, de ter envelhecido, doente, esquecido, abandonado, ainda sabia todos os truques, todas as facetas e estratégias do jogo. Por um momento, percebi que estava diante do grande jogador que ele havia sido, e mesmo agora, ainda é. Seria glorioso ganhar dele. Ainda mais, porque ele tinha a noção que era superior a mim, então, tirar o sorriso cínico, irônico, desdenhoso daquele rosto enrugado valeria muito a pena! 

— Vamos jogar! — sorri, me inclinei e recebi minhas cartas do crupiê. 
Mais 2 horas se passaram, os homens que nos rodeavam, agora estavam dando sinais de exaustão. Acho que eles não esperavam que durasse tanto. 
Olhei para o “imortal”, então percebi, ele havia parado de sorrir, havia suor escorrendo pela sua testa. Comecei a imaginar que ele não suportaria muito mais. 

Mais uma hora se passou, ele começou a bufar, como se buscasse o ar. Na mesa, o crupiê me jogara um 5♣ e um 8♠. O velho parecia não se importar. Ele olhou seu pocket, novamente buscou ar. 
— Precisamos acabar isso. — bradou. 
— Se quiser desisti... 
— Não! — gritou desesperado. — Eu jamais desistiria. 
Dito isso, ele pagou a blind. O crupiê, cauteloso, aparentemente assustado, imaginando talvez que o velho estivesse perto de ter um enfarte, separou rapidamente 3 cartas e as colocou na mesa. Um 5♥, um 4♦ e um 5♠. 
O velho olhou o flop, resfolegante e apostou alto. 
— Você está bem? Se quiser parar, eu entenderei. Você não parece bem. 
— Eu estou ótimo! — Vociferou ele. — Jogue ou desista! 

Ele não estava pensando direito! Pude ver. Olhei para ele, balancei a cabeça e paguei. 
O crupiê puxou uma carta para o turn, um 8♥. O velho, mais uma vez respirou fundo. Novamente apostou, quase a metade do pote. Olhei, paguei. Pude ver medo nos olhos do velho, ele estava a ponto de ter um desmaio. 
O crupiê, puxando sua última e derradeira carta, abriu um 4♥ no river. Mais uma vez, o velho colocou quase meio pote. 
Dessa vez, eu me levantei da cadeira com um grande sorriso. Dobrei sua aposta. 
— O quê? Quer me iludir com meu próprio truque?! Jovem tolo! Quer me fazer correr com meu próprio blefe?! — Gritou, tremendo e quase tendo um ataque! — Allin! 

Sim, era o que eu queria. Queria que ele pensasse que eu estava blefando e fosse allin para me tirar da mão. O velho estava nas últimas, não estava mais pensando direito. Indo até a mesa, anunciei o call e virei meu fullhouse. Esperava que o velho tivesse um ataque cardíaco àquela altura. 
Surpreendentemente, ele, agora, estava ereto, respirando normalmente. Com toda tranquilidade do mundo, ele esticou a mão e virou um par de 4. Enxugou a testa e disse: 
— Eu lhe avisei, garoto. Muito fácil. Agora que você já teve o que queria... liberte a minha neta! 
Sentado, atônito olhando para a quadra na mesa, acenei para o empregado de blazer que soltasse a menina. 
— Minha dívida com seu patrão está paga! Diga-lhe isso. — O “imortal” pegou a mão da menina e saiu. 
Eu continuava atônito, olhando a quadra, pensando que havia perdido, porém, agora a dívida era minha e, com certeza, meu chefe iria cobrar... 


Fim! 

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